quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A livraria PTYX é um livro aberto

Eu desço a rue Lesbroussart como se estivesse a descer a rua do Alecrim: a baloiçar os braços e sem travões nas pernas. Cá vai disto.
A meio da rua, mais para baixo do que para cima, vejo a livraria PTYX, uma casa branca com escritores pendurados nas janelas.
Eu leio a fachada da livraria como quem lê um livro.
É que o rosto da PTYX reproduz a página de um dicionário. De alto a baixo, letras pretas sobre a fachada branca.
Para meu regozijo, ao lado da montra, na porta imaculada, está a Virginia Woolf. Eu passo por ela e tiro-lhe o chapéu.
A livraria PTYX é um livro aberto. Eu entro e leio os títulos, ouço o murmúrio nas prateleiras. Um murmúrio contínuo, como um texto que passa. Abro os pequenos livros como se abrisse ostras ou pequenos tesouros. Com dedicada cautela e expectativa.
Regra geral, fico no cantinho das novelas gráficas. Descubro grandes pérolas ali. Uh là là!
A livraria PTYX é a minha livraria de eleição.
No entanto, a minha eleição não lhe serve de muito. Não sou grande cliente. Na verdade, sou uma porcaria de cliente. Por norma, só lá vou aos sábados e nem sempre é possível passar na PTYX aos sábados. Há outras coisas para fazer.
Que outras coisas, pá?
Sei lá. Outras coisas.
Quando desço a rua Lesbroussart, são mais as vezes em que passo na livraria sem entrar do que as vezes em que lá entro. Independemente disso, tiro sempre o chapéu à Virginia Woolf.
Como é que é possível não ter tempo para as livrarias?
Receio que a maior parte da clientela da PTYX seja como eu: uma clientela de sábado-à-tarde-quando-dá. Se assim for, a PTYX tem os dias contados. Não é possível manter uma livraria com clientes sem travões.
Infelizmente para mim e para outros, a PTYX não abre aos domingos. São os próprios livreiros que explicam: on n’est pas feignant, ON LIT! Aos domingos, estão a ler, claro. Eu também leio aos domingos. Compreendo e aprovo.
Sempre que passo em frente à PTYX a baloiçar os braços e sem travões nas pernas, sinto remorsos.
Se a PTYX fechar, a culpa é minha.
Os leitores têm de ir às livrarias. Têm de folhear os livros nas livrarias. Têm de comprar livros nas livrarias.
Por uma questão de respeito e gratidão.
Não basta tirar o chapéu.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A narradora ambulante

Lá vai a narradora deste texto. Sai de casa de mãos soltas.
Traz nos pés uma certeza qualquer sobre o mundo. Auscultadores enfiados nos ouvidos, uma introspeção enfiada nos olhos.
A narradora quase sorri por causa da canção alegre que traz nos ouvidos.
Só ela ouve aquela canção. Só ela vê aquele mundo.
O princípio do sol sobre as casas, as nuvens pequeninas a passear no céu.
A narradora estica a espinha dorsal e o dia começa.
Dobra a primeira esquina. Passa pelo quiosque de jornais onde nunca entrou, diz olá ao cão que leva o dono pela trela. Passa pela bruxa má que varre o chão, pelo ciclope que dorme sobre os sacos do lixo, pelo gato felpudo que está sempre sentado no parapeito.
Chega ao cruzamento, sinal vermelho para os peões. A narradora olha para o mural de banda desenhada, que representa precisamente um cruzamento.
Ficção e realidade cruzam-se. A narradora atravessa para o lado de lá.
Uma casa muito comprida debruça-se sobre ela. O bicho-papão cumprimenta-a da janela.
A narradora olha para os caminhos de ferro lá em baixo, sente-lhes o cheiro manhoso. Ao fundo, a Branca de Neve rega as plantas. A narradora acena-lhe ao longe.
Enquanto caminha, pensa nos seus próprios pés. Nos seus tornozelos. Nas unhas minúsculas na ponta dos dedos mindinhos. Enquanto caminha, a narradora pensa no ato de caminhar. Gosta de deambulações.
É uma narradora ambulante. E sente um certo domínio sobre a vida.
Sobre a física.
Sobre os pés.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A minha mãe penteia os meus cabelos

A minha mãe penteia os meus cabelos e também as árvores e os rios. 
Os caminhos ficam muito direitos. As casas abrem as janelas.
A minha mãe estica o meu cabelo e também as nuvens e as ondas.
As aves voam mais alto. As flores falam mais baixo.
Tudo é maior e mais claro, quando a minha mãe penteia os meus cabelos.
O céu boceja. Prolonga os braços.
A minha mãe desembaraça as horas e também os meus cabelos.
O sol olha para o mundo com um certo espanto no rosto.
E a tarde pousa no chão como um milagre.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

À porta fechada

Chegas a casa, fechas a porta, rodas o trinco.
Olhas para trás para te certificares de que rodaste o trinco.
Sim, rodaste.
Tu suspiras. Há um certo alívio no isolamento. Uma liberdade na clausura.
Como assim?
Tu olhas para a tua mão direita, que rodou o trinco, e não gostas da tua mão direita, porque rodou o trinco. É um movimento novo.
Estás trancada.
Como se fosses um tesouro. Uma pérola. Uma relíquia. Uma princesa isolada no cimo da torre.
Tu pensas: É mais seguro assim. É tão mais seguro assim.
Estás na tua casa, na tua torre. À porta fechada.
E ninguém entrará aqui. Absolutamente ninguém.
Só a porteira poderia entrar na tua casa.
Não. Nem sequer a porteira. (Está de férias.)
Tu suspiras um sufoco bonito.
Só o teu marido entrará. Há de voltar não tarda.
E de repente lembras-te daquele teu amigo, que também tem a chave da tua casa.
O teu amigo podia entrar agora mesmo.
Podia, não podia?
Sim, podia.
Por que deste a chave da tua casa?
Um ladrão também poderia entrar na tua casa. Primeiro espreitaria pela fechadura e depois entraria de rompante ou então devagarinho, sem fazer barulho.
Tu escutas o barulho da casa. Tu não fazes barulho para escutares o barulho da casa.
É como se jogasses às escondidas com o mundo. É como se jogasses às escondidas contigo própria.
E antes não eras assim, pois não?
Não.
Antes perdias as chaves aqui e ali. O senhorio ralhava contigo. Mudava-se o trinco. Mudava-se o senhorio. Perdias as chaves outra vez.
Nem sequer trancavas a porta por dentro ou por fora. Trazias para casa as chaves de outras pessoas. Chaves de hotéis longínquos.
Também te esquecias das chaves em casa. Ficavas do lado de fora. Pedias à senhora da livraria que ligasse a um serralheiro. A senhora da livraria oferecia-te guarida, tu recusavas. Ligavas a uma amiga. Dormias num sofá. Em lençóis mais frescos do que os teus.
Tu estás fechada dentro da cabeça e pensas nessa pessoa que não trancava a porta de casa.
Hoje acordas de manhã e rodas o trinco. Abres a porta, abres os olhos e dás com as tuas chaves do lado de fora. As tuas chaves de casa penduradas na porta, a convidar qualquer um a entrar. Esqueceste-te delas ali, na fechadura.
E é como se o mundo inteiro jogasse às escondidas contigo. É como se tu própria jogasses às escondidas contigo.
Por um lado, fechas-te por dentro. Por outro, atiras a chave à rua.
De um lado da porta, és uma coisa. Do outro lado, és outra coisa.
Tu espreitas pela fechadura e vês o teu reflexo, a tua sombra.
Uma parte de ti está fechada em copas. E a outra está aberta ao mundo.

sábado, 8 de agosto de 2015

Trinta e três

Eu digo: Trinta e três. E a língua destrava e tropeça, dou uma trinca no três.
Trinta e três é um trava-línguas atarantado.
Eu penso: Vai ser um ano tramado. Ou talvez não.
Aos trinta e três, Jesus morreu e regressou à vida. (Cruzes, canhoto!)
Aos trinta e três, Jesus mudou o mundo e também o tempo: antes de Cristo, depois de Cristo.
Aos trinta e três, tudo é possível.
O inverso de trinta e três é trinta e três. É o mesmo número para a frente e para trás.
E eu gosto à farta de capicuas.
O meu nome também é uma capicua.
Eu própria sou uma capicua. Sou o mesmo número para a frente e para trás.
Isto quer dizer que eu e o número trinta e três temos coisas em comum.
Eu digo: Trinta e três.
E já não trinco o número. Já não tropeço no tempo.
Antes de mim, depois de mim.

Voilà!

Ressuscitei.