sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Mary John na Revista Blimunda

A edição de dezembro da Revista Blimunda já está disponível aqui: http://www.josesaramago.org/blimunda-55-dezembro-2016/

Andreia Brites dá destaque à Mary John num texto total e robusto que deixou a minha alma pasmada e a minha boca aberta.
Aqui fica o naco final:

"(...) O que esta novela consegue, e por isso é literatura de primeira água, é conjugar o singular com o universal. Rejeita a moral, o paradigma social e traz uma história de vida de uma rapariga filha de pais separados que idealiza uma relação especial e imutável com o melhor amigo, o vizinho da praceta. A mudança de idade, a presença de outros que a desafiam na sua identidade, a perda de atenção, o sofrimento que questiona. E a mudança de cidade, de escola, uma motivação sustentada pelo que se perdeu. A descoberta da paixão, de si, dos outros, de que há sempre outros. A elevação da narrativa está precisamente nos pequenos apontamentos, no equilíbrio de cada um, em que nenhuma descrição está a mais. Mary John é uma narrativa compulsiva que surte um efeito de desconcerto.

O que é literatura juvenil? É isto."

O texto completo está disponível nas imagens (em baixo) e na revista (em cima).

Vale a pena ler outros artigos da Revista Blimunda, claro. Alguns exemplos: Pilar del Río fala-nos da feira internacional do livro de Guadalajara, Sara Figueiredo Costa leva-nos a exposições de fotografia em Madrid e Andreia Brites brinca com vários "livros-jogos".

Este blogue fica-se por aqui este ano, acho.
Bom 2017!















Mary John na Revista do Expresso

Nas escolhas de 2016 da Revista Expresso, Sara Figueiredo Costa dá destaque à Mary John.

Bela surpresa!

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A Mary John no Expresso

A "Mary John" faz parte das sugestões de livros para o Natal do jornal Expresso (por José Mário Silva):
"Para a filha mais nova, não muito dada a leituras, este talvez seja o presente que a vai apanhar de surpresa e trocar-lhe as voltas. A eventual desconfiança desfaz-se logo nas primeiras páginas, quando a protagonista, Maria João, abre a sua intimidade e se coloca no lugar daquela amiga sobre a qual queremos saber tudo. Combinando a prosa ágil e inteligente de Ana Pessoa (autora de “Supergigante”) com as fabulosas ilustrações de Bernardo P. Carvalho, “Mary John” é uma viagem fascinante pelos labirintos da adolescência, contada por quem o viveu, durante a difícil mas necessária travessia."

Tau! Grande prenda de Natal!

Dez livros para animar o Natal dos mais novos

Já compraram as prendas para os mais novos, por acaso?
Se precisarem de ideias, espreitem as sugestões da Visão.
A Mary John é um dos "Dez livros para animar o Natal dos mais novos".
Escreve Gabriela Lourenço:

Inseguranças, certezas, descobertas, medos, paixões e paixonetas, amizades, alegrias e tristezas, atos de coragem e de determinação, de tudo isto se faz este relato de uma adolescente que se confronta com o seu crescimento (cresce ela, cresce a sua franja, cresce a sua carta para Júlio Pirata que nunca será verdadeiramente uma carta). Um relato que Bernardo Carvalho ilustrou a azul forte e branco, ajudando-nos a mergulhar na história. 

Eu fiquei logo animada. A Mary John também.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O sol nasceu

A vida está preta. A fome é negra. O amor é cego.
Este mundo anda tão sinistro.
Vive-se pouco. Morre-se muito.
Uma pessoa acorda de manhã e o dia ainda está de noite.
Só apetece comer chocolate. Beber vinho tinto. Escrever baixinho.
O meu caderno muito branco a rir-se no escuro.
Ho ho ho.
Ainda assim, é Natal.
De repente fez-se luz na rua.
O meu caderno disse: O sol nasceu.
E esta frase despertou-me para uma outra rua. Para a canção da Rua Sésamo.
O sol nasceu. Como está lindo, o céu.
Eu tenho oito anos e jogo à macaca, danço a lambada. Tenho um pequeno órgão de música. Toco canções de Natal, sobretudo aquela assim: Last Christmas I gave you my heart.
Eu não percebo a letra, mas percebo a dor.
Eu canto: Que venha de dentro de mim essa nova mulher. É a canção da Toina, mas eu não quero ser a Toina. Eu quero ser a Tieta do Agreste.
Lembro-me disso. De ter oito anos. De rasgar os dois joelhos numa queda valente. De rasgar o meu vestido azul a saltar por cima de uns arbustos. No Carnaval mascarei-me de empregada doméstica. Li as Mil e uma noites numa edição ilustrada. Tinha terrores noturnos com os quarenta ladrões.
Aos oito anos usava umas fitas na cabeça que tinham um lacinho a meio. Tinha vergonha de me assoar. Engolia sempre o ranho. E era a mais alta da turma.
Eu gostava disso. De ser a mais alta da turma.
Não sei por que razão me lembrei de tudo isto agora. Afinal de contas hoje é o primeiro dia de inverno. Está um dia soturno. Tenho frio nos dedos.
Os meus sobrinhos têm oito anos. Que engraçado.
O meu caderno branco acha que eu devia ir até ao mercado de Natal. Beber vinho quente, morrer um bocado.
O meu caderno branco tem humor negro. Chama-se Mirror Mirror.
É o meu caderno de inverno.
O meu habitat natural.
O meu animal noturno.

domingo, 4 de dezembro de 2016

A culpa é da Adília Lopes

Está sol lá fora. Perguntaram-me se queria beber café às duas e meia e falar da vida. Eu disse que não me dava jeito. O meu frigorífico está vazio. Além disso, tenho de passar no oculista e na loja dos candeeiros.
Não posso continuar a escrever às escuras. E também tenho de mudar de cadeira. Doem-me as costas.
Às duas e meia não é uma boa hora para falar da vida. Toda a gente sabe isso.

Neste momento são duas e meia e ainda não saí de casa.
Podia estar a tratar da vida ou a falar da vida. Mas afinal estive para ali deitada a ler Adília Lopes.
A certa altura adormeci e depois acordei e continuei a ler Adília Lopes. No final do livro levantei-me e escrevi isto.
Não tenho sentimentos de culpa. Mas tenho alguma noção do ridículo.
Acho eu.

Tirei esta fotografia a um poema da Adília Lopes. Ficou um bocado cinzentona.
Paciência.
Isto sou eu a imitar a Adília Lopes.
Não resulta.



quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Mary John Chaca chaca!

Foi tão bom, tão bom, tão bom. 
Casa cheia de leitores.
Grande Planeta Tangerina!

No final fiquei com dores nos dedos e também na alma. 
A Mary John continua a sua vida sem mim.


Esta e outras fotos disponíveis no blogue do Planeta Tangerina.

domingo, 20 de novembro de 2016

 

 Festa de Natal do Planeta Tangerina 


 26 NOV. (sáb.)  /  16h30
Padaria do Povo (Campo de Ourique) 



Apresentação do livro “Mary John” (de Ana Pessoa + Bernardo P. Carvalho) por Susana Moreira Marques -> leituras encenadas
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Atelier Chaca chaca com Yara Kono
-
Venda de livros, serigrafias, outras coisas lindas
e oportunidades incríveis

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Lanche a condizer
Morada: R. Luís Derouet 20, 1250-096 Lisboa
Estacionamento subterrâneo junto ao Mercado de Campo de Ourique


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quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Mary John

Aguentem-se à bomboca!
A "Mary John" já aterrou no Planeta Tangerina e está a caminho das livrarias. É um livro tão bonito. Tão azul. Tão intenso.
Estou feliz. E também emocionada. Entusiasmada. Azul. Vermelha. Cor de rosa. Transparente.
Uma edição do Planeta Tangerina. E ilustrações brutais do sempre brutal Bernardo P. Carvalho.
Para já, podem folhear umas páginas aqui.



segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Crime Passionnel

Num acesso de raiva e de sede, pedi um "Crime Passionnel".
Gostei do nome e da maldade. Além disso, apetecia-me um delito à pressão.
Não há mal nenhum nisso.
A minha boca anda cheia de fúrias.
E este mundo está tão frio. Tão desanimado.
Parece mesmo um cadáver.
Uma vez escrevi um policial violento. Tinha onze anos.
Em todos os capítulos morria alguém.
Era uma família grande e eu gostei à brava de matar toda a gente.
Escrevi dezenas de páginas, talvez centenas.
Nos intervalos da escrita, ilustrava o livro com grandes facas e poças de sangue.
Ah, bons velhos tempos.
Um dia hei de escrever outro policial. Mas hoje não.
Hoje estou com um impulso muito pouco criativo.
Estou com um impulso desconhecido para o ardor e a cólera.
Felizmente, o meu "Crime Passionnel" chegou depressa. Era uma cerveja bonita. Tinha a cor misteriosa do âmbar.
Valha-nos isso: a cerveja belga.
Um brinde infame aos malfeitores.
Soltei uma gargalhada perversa e bebi um trago de insanidade borbulhante.
Era uma cerveja amarga. Senti um calafrio na espinha.
No meu sistema digestivo, um crime passional a fermentar.
Estou com uma aversão furiosa ao mundo.
O que fazer perante o estado do mundo?
Não sei.
Por enquanto bebo com sofreguidão.
A minha boca amarga e condenável. Cheia de pensamentos impiedosos.
Estou para aqui a beber "Crime Passionnel" e a imaginar transgressões.
A afogar as mágoas do mundo.
É esta a minha infração. A minha pequena ira.
O meu crime apaixonado. Furibundo. Inofensivo. Não premeditado.
Amanhã vou ter dores de cabeça. Mas isso depois passa.
O tempo passa. Tudo passa.
Se calhar até escrevo um texto.
Para que serve um texto?
Não sei.
Serve para matar a sede. Para matar saudades.
Por exemplo:
Morra o Dantas, morra. Pim!

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Supergigante no México

Arrebenta a bolha!

O Supergigante acaba de chegar ao México pelas mãos da editora El Naranjo numa tradução explosiva de Paula Abramo. 
Começa assim: "Corro y no avanzo". Podem ler um excerto aqui

A apresentação terá lugar no próximo dia 18 de novembro às 16 horas na "Feria Internacional del Libro Infantil y Juvenil" na Cidade do México.



terça-feira, 8 de novembro de 2016

Losing on a Tuesday

Estou a ver a CNN há horas, mas não estou a ouvir nada. Tirei-lhe o som.
A CNN está para ali muda e calada.
Estou a assistir às eleições americanas ao som de Adam Green, americano de ginja.
Há pouco aconteceu uma coisa engraçada aqui nesta sala: o Trump estava ali a votar algures em Manhattan e o Adam Green cantou assim:


Losing on a Tuesday filled with purposeful disasters
Tell her I'm losing on a Tuesday afternoon



Pareceu-me premonitório.
De resto é uma bela canção.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Lisa Hannigan

Ouçam: no outro dia vi a Lisa Hannigan. Estava mesmo à minha frente, em cima de um palco. Apareceu no escuro a dedilhar a essência das coisas e também a sua guitarra e, durante duas horas, não houve discórdias no mundo. Não houve amuos nem guerras nem fome. Só harmonia e comoção.
Primeiro a guitarra e logo a seguir a sua voz iluminada de criatura mitológica. A dizer qualquer coisa sobre as palavras, que boil away like steam. A cantar que I am empty as a promise. E uma pessoa fica cheia de esperança na vida, na música, na humanidade.
A Lisa Hannigan com o seu ar de elfa solitária. A dizer: I am lonely as a memory. E eu cá tive vontade de verter pieguices pelos olhos e também de escrever pelos dedos.

No final comprei um CD e também um caderninho de apontamentos. Fui para a fila de autógrafos, tirei-lhe fotografias. 
A Lisa escreveu no meu caderno: Happy writing! 
E eu desatei logo a escrever.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Vergílio Ferreira

Era domingo. Eu estava a ler Vergílio Ferreira.
Um livro urgente. Entre a capela e o mar. Entre a vida e a morte. Até ao fim.
As páginas meio surradas, a esfarelar. Coitadas.
De repente, uma frase deslumbrante sobre o mar. E logo a seguir outra.
Eram frases gigantes, dramáticas. Poderosas.
Fiquei a vê-las chegar. Uma frase aqui, outra ali.
Lá vinha mais uma. Alta e cheia. Em estado líquido.
Rebentavam na cabeça uma e outra vez.
Como ondas.
A certa altura decidi agarrá-las. Eram frases reais. Tinham pele e cheiro. Poderiam morrer a qualquer momento. Estavam vivas.
Vai daí, copiei-as para um caderno com a minha letra ridícula. E elas ficaram dentro de uma página, a secar.
No final reli essas frases e achei que deviam existir assim. À toa e à solta.
Como poemas. Como mergulhos.
Como ondas. Assim:





















Ouço o mar, é tudo grande e terrível.

Olho o mar ainda, fascinado pelo seu mistério, de que nasce o seu mistério?

Ouço-o na sua massa pesada e escura, retumba no oco do pavor.

E o rumor imenso do mar. Alargado a todo o espaço, mais intenso, exclusivo na solidão do amanhecer. Ouço-o. Pequeno eu face à sua imensidão.

Mas é preciso prestar atenção para o ouvir, no seu rumor implícito como o da harmonia das esferas.

Fresco de brisas o mar, estendo-o ao meu olhar difuso cansado. A verdade primeira. A verdade do início.

O sol vibra à superfície das águas. Um aroma a maresia. Um aroma a existir.

Gostava tanto do mar. Da força repousada do mar. Da música gigante do mar.

A verdade do mar.

O estrondo rouco do mar.

Absorver em nós a imensidão.

O mar deserto até ao limite do poente.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Karateca e Supergigante no Brasil

Duas notícias do Brasil em 2016 (com alguns meses de atraso):
1) A "menina karateca" foi reeditada pela editora SESI-SP.
2) O Supergigante foi considerado "altamente recomendável" pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) na categoria de "literatura em língua portuguesa".
Nossa, é muito legal!

quarta-feira, 28 de setembro de 2016



O que é isto da Literatura
infanto-juvenil?


Conversa com Ana Pessoa, Madalena Matoso e Miguel Gouveia
Moderação: José Mário Silva

 2 de Outubro / Domingo / 15h00 
 Livraria da Adega, Óbidos 


Mais informações:
Festival Literário Internacional de Óbidos

http://foliofestival.com

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Karl Ove Knausgård

Acabei de ler o primeiro volume daquele norueguês. 
Aquele da autobiografia.
Nunca me lembro do nome do senhor. Mas lembro-me do rosto.
Sim, lembro-me.
Vem na capa. Até lhe tirei uma fotografia.
Assim.

Um rosto impetuoso e desobediente. Com toques de insano. 
Uma pessoa olha para aquele rosto e tem vertigens. 
Eu, pelo menos, tenho. 
É um rosto à beira do desequilíbrio. 
Se o visse na rua diria: "Aquele é o escritor norueguês que mete medo aos leitores mais robustos."
O escritor papão.
Parece um homem bonito, mas não é um homem bonito. Olhem bem para ele. É tenebroso. O rosto cheio de fissuras. 
O Karl Ove - sim, é esse o nome - tem cara de fiorde. Espanta e assombra.
Acabei de o ler na praia. Sentei-me na toalha e fiquei a olhar para o mundo. Era tudo tão aborrecido. O mar sempre igual, a areia aos bocados. Um rabo muito feio ali à frente. Credo. O mundo é tão desengraçado. 
Nem as bolas de Berlim me devolveram o ânimo. 
Entrei na água e fiquei a boiar nas ondas medíocres. 
A culpa era do sol e também daquele norueguês papão.
O Karl Ove escreve de forma lenta e corrosiva. Fala-nos do pai e do irmão, da mulher e da ex-mulher, faz uns desvios por Rembrandt, escreve sobre a neve e as nuvens, sobre o alcoolismo, a incontinência, a imundície. Sobre a "insuportável banalidade" da vida. 
Sim, é disso que eles nos fala. Sublinhei esta expressão no livro, traduzido com minúcia por João Reis. A "insuportável banalidade".
A certa altura vamos com o Karl Ove ao supermercado. Compramos produtos de limpeza. Estamos com ele a lavar a casa com luvas amarelas. A esfregar o corrimão das escadas. Perguntamo-nos: Para que interessa a marca do produto de limpeza? Para que serve esta descrição detalhada do processo?
Não sabemos, mas não paramos de ler. 
Karl Ove cozinha salmão com batatas e couve-flor e nós cozinhamos com ele.
O livro avança devagar como certas horas. Como certos males.
A sua prosa parece enfastiada ou apática, mas não é. É uma prosa sinuosa, aterradora, perturbada.
Eu fico a pensar no rosto deste escritor papão. E também fico a pensar na couve-flor.
Neste volume o Karl Ove comeu couve-flor umas três vezes. 
É o legume mais enfadonho que conheço. 
Fiquei a pensar nisto.
Não sei porquê.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Biblioteca de Bolso

Gosto à brava de boas conversas sobre livros e leituras, por isso ouço a Biblioteca de Bolso todas as semanas.
Quando a Inês Bernardo e o José Mário Silva me convidaram a participar neste podcast, comecei logo a abanar a cauda. Fiz várias listas de livros. 
No final levei um romance adulto, um romance juvenil e uma novela gráfica.
Falámos de monólogos interiores, de boas intenções e de autobiografia. 
Foi uma conversa bem boa!

Podem ouvi-la aqui:
https://soundcloud.com/biblioteca-de-bolso/ep-32-ana-pessoa

terça-feira, 26 de julho de 2016

Olhar através de uma janela

Olhar através de uma janela. Através de um quadro.
Para uma casa. Para outra janela.
Para aquela árvore ali ao fundo, extremamente escura.
É uma árvore roxa, quase negra.

Que cor é aquela? 
Não sabemos. 

É a cor de certas noites. De certos vinhos.
Não conhecemos aquela espécie. 
Não conhecemos aquelas folhas. 
Uma árvore noturna.

É possível pensar sobre as coisas sem conhecer os nomes.
É possível pensar sem saber.

O mundo lá fora e o mundo cá dentro. 
Estar no meio. 
À janela.
Um pequeno mundo dentro de uma moldura.

É possível viver num mundo com os olhos postos noutro mundo. 
Entre um mundo e outro, o enquadramento. A janela. 
Um mundo dentro de um quadrado. Dentro de uma caixa.

Observar. Esperar. 

Um pedaço de mundo que entra e sai da moldura.
Por exemplo, um avião. Uma folha. Uma bicicleta. Qualquer coisa. Ao acaso.
A passar.

Do outro lado da janela, a árvore noturna baloiça.
Outras árvores também baloiçam ao lado da árvore noturna, mas não da mesma maneira.
A árvore noturna vai um pouco mais longe com o corpo, prolonga certas curvas.
É sedutora. Sinuosa. 
Noctívaga.

Está impecavelmente enquadrada, no centro da janela.
Plantou-se ali de propósito. Ou então sem querer.
Em frente à janela.
Em frente à narradora.

Uma narradora, uma janela e uma árvore. Impecavelmente alinhadas.
Pertencem ao mesmo mundo, mas não completamente. 
A narradora não participa no movimento da árvore. 
Não sente aquele pedaço de vento. Não sente o mesmo pedaço de terra.

Eis o poder de uma janela: pertencer ao mundo mas não completamente.
Pertencer ao longe. Vagamente.
Ter a impressão de pertencer sem pertencer.
Fazer parte do mundo como uma recordação.
Como um vestígio.

A narradora deste texto olha para a janela e já não vê a árvore.
Vê os seus olhos, o seu cabelo.

Eis outro poder de uma janela: o reflexo.

É mais bonito observar o reflexo numa janela do que num espelho.

O reflexo numa janela não é bem um reflexo. É uma sombra.
Uma presença noturna. 
Sinuosa. Sedutora.
Quase não pertence.

O reflexo na janela é uma recordação.

Olhar através de uma janela.
O vestígio de qualquer coisa.
Uma pausa no espaço.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Ser Português Aqui

Hoje estive em animada conversa com a Lídia Martins no programa "Ser Português Aqui" (Rádio Alma, Bruxelas). 
Falei pelos cotovelos (e pelas entranhas) sobre a capital belga e sobre esta coisa de ver Portugal ao longe. 
Também falámos de leitura, escrita, música e adolescência.
O programa passa na Rádia Alma (www.radioalma.beamanhã, sábado, 23 de julho, às 11 horas (10 horas em Portugal), e no domingo, 24 de julho, às 14 horas (13 horas em Portugal).
Em breve ficará também disponível em podcast (eu depois aviso).

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Não escrever nada

Não escrever nada.
Não querer escrever nada.
Nenhuma história. Nenhum lugar.
Nenhuma palavra.
Nem sequer uma sílaba: não.
Nada.
Niente. 
Rien du tout.
Pensar em escrever.
Não pensar em escrever.
Não pensar.
Sem culpa. Sem pressa.
Sem.
Oco. Eco. Espaço.
Não. Nada.
Nenhum. Ninguém.
Nenhures.
Nunca.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Os papagaios miúdos

Hoje passei pelos papagaios.
Estavam aninhados numa árvore a papaguear.
Eu vivo no terceiro andar de um prédio de esquina e eles vivem no segundo andar de uma árvore, que fica mesmo no meio da rotunda.
São papagaios miúdos, de cauda comprida.
Na verdade, não são bem papagaios. São periquitos-de-colar.
Hoje tirei-lhes uma fotografia.


Estavam a arrumar o ninho numa grande algazarra.
Um ia buscar pauzinhos e os outros gritavam com ele.
Esse pau, não, dizia um. Aquele ali é mais flexível.
Era um grande chinfrim no meio da rotunda, no meio da estrada, no meio da cidade.
Mas as pessoas não se zangam com os periquitos que parecem papagaios.
Riem-se para eles.
São tão exóticos. Tão pequeninos. Tão coloridos.
Uma pessoa pergunta: Não terão frio?
Alguém responde: Se vieram cá parar, é porque gostam de estar aqui.
Se calhar devíamos olhar para os imigrantes como olhamos para os periquitos.
Com alguma curiosidade. Com um pouco de ternura. E um certo espanto.
Talvez então parássemos de papaguear discursos provincianos com tiques nacionalistas.
Arre!

segunda-feira, 20 de junho de 2016

A providência divina

Entro na boca do metro. Sinto-lhe o sopro pestilento.
Vejo o chão aos quadradinhos, umas botas de senhora, duas pernas nuas, saltos altos, sapatilhas velhas.

De súbito, um livro.

Está pousado no chão, mas não propriamente tombado. Aterrou em cima das patas, como os gatos. O lombo apontado para o teto. As patas sólidas e resolutas.
Não caiu do céu. Não sucumbiu. Este livro está de pé.
Penso: Aqui há gato.
Talvez seja uma obra de arte. Uma provocação. Ou então uma bomba.
Para estourar com a rotina.
É um livro com caráter. Uma presença mística.
Está ali porque quer.
Abrando o passo, mas não chego a parar. Passo os olhos pela lombada: 

God's creative power.

Penso: Eis um livro miraculoso.
Com ambições celestiais.
Decido passar por cima do pequeno deus. O meu pé todo-poderoso, a sobrevoar o poder criativo, a desafiar a divindade. Pouso o pé do outro lado e rio-me da minha proeza.
A vida continua. Sem prodígios. Sem espanto.
Desço as escadas. 
Eu no esófago do metro, a pensar no livro misterioso. 
Talvez trouxesse um pequeno génio lá dentro. Um santo milagreiro. Um homem bom.
Jesus. Ou então Maomé. Um desses.
Penso: Quero aquele livro só para mim.
Um pequeno génio só para mim. Um pouco de Deus. Um pouco de Alá.
Volto para trás.
Corro pelas escadas acima, o poder criativo a acelerar as pernas.
No chão vejo apenas as pernas das pessoas que passam. Sapatos, botas.
O livro sumiu. Ascendeu ao céu. Desceu ao inferno. Entrou no metro. 
Ou então alguém o levou.
Seja como for, aquele livro não é meu.
Nunca foi meu.
Jamais será meu.

Assim era a Sua vontade.
A Sua escolha.

Não me benzi. Não me queixei.
Pensei: Eis a decisão do Criador.
A providência divina.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Karateca e Supergigante na Escola Europeia de Bruxelas

Hoje estive na Escola Europeia de Bruxelas com algumas turmas de Português.
Alunos participativos, alegres e curiosos. Grandes devoradores de livros.
Houve leituras em voz alta. E até leituras em coro!
No final recebi desenhos memoráveis da Joana, do Diogo e do Filipe.
Um muito obrigada às professoras de Português, em especial à professora Fátima Azóia, pelo convite, pelo entusiasmo e pela organização deste encontro.
Yáááá!

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Apanhei uma molha daquelas

Apanhei uma molha daquelas. Eu sozinha na rua. A água a escorrer pelo queixo abaixo. A cair por terra.
Ao meu lado, aqui e ali, pequenas e grandes poças, um rio comprido e barulhento a banhar o asfalto.
Toda eu encharcada. Da ponta dos cabelos à ponta dos pés.
E passando pelo sutiã. Pelas cuecas.
Os meus óculos às pintinhas.
Foi uma precipitação algo precipitada. Espalhafatosa. Feminina.
Primeiro fingi que gostei e depois gostei mesmo.
Uma choradeira geral só para mim. Por que não?
Foi um lavar de alma suja. Um pequeno melodrama.
Entrei no prédio.
A chuva atrás de mim e a vizinha do segundo andar à minha frente.
Perguntou-me assustada e, logo a seguir, comovida: Madame, não tem um parapluie?
Eu disse: Não.
E não tenho mesmo.
Os guarda-chuvas não me gramam. Vão para outras casas, para outras terras.
Quis secar a testa e os olhos, mas não tinha como.
A minha alma completamente inundada. A minha mala embebida, os meus dedos a pingar para o chão.
A vizinha do segundo andar abriu-me a porta do elevador, carregou no botão do meu andar. Eu agradeci e depois olhei-me ao espelho.
O meu cabelo, o meu rosto, a minha roupa. O meu corpo a verter chuva, suor e ranho. Eu pensei: Eu própria sou o ciclo da água.
Uma mulher a pingar é uma grande pieguice.
Depois entrei em casa e enfiei-me no banho.
Para me molhar mais e melhor. Para me molhar aos molhos.
No final sequei o cabelo e decidi arranjar um guarda-chuva. Um muito grande ou então muito pequeno. Daqueles muito tímidos e concentrados. De trazer na mala ou então na mão.
Um guarda-chuva com abertura automática. PUM!
Carrega-se num botão e já está.
Sim!
Devia arranjar um desses. Um guarda-chuva igual a uma arma.

Eu não digo: chapéu de chuva. Eu digo: guarda-chuva. Foi uma decisão consciente.
Guarda-chuva sempre guarda o hífen. É uma palavra mais compacta. Mais reservada.
E enfim...
Sei lá.

Chapéus há muitos.

sábado, 28 de maio de 2016

Tu t'imagines

Vejo duas raparigas ao longe. Vêm a cochichar divertidas. Com a boca e com as mãos.
Estão vestidas de preto da cabeça aos pés. Vestidos largos e uns lenços muito bem apertados à volta da cabeça. Os rostos bonitos, perfeitamente emoldurados. Nem um cabelo à vista.
Tenho um certo fascínio por estes lenços. Pela arte de os atar à volta da cabeça. As dobras muito bem dobradas. Dois alfinetes nas têmporas.
Estou cada vez mais perto das raparigas. Elas caminham de lá para cá e eu de cá para lá. Os olhos grandes e vivos. Um pedaço de frase: Tu t'imagines. Risinhos.
Param no meio da rua e tiram uma selfie.
As duas raparigas paradas no tempo e no espaço. Abraçadas uma à outra, as cabeças muito próximas. O telemóvel em cima e elas em baixo. Apertam os lábios carnudos, a simular um beijo uma na outra.
Passo por elas. Olhos grandes e vivos.
Só então reparo que trazem os lábios pintados. Um vermelho inflamado. Radiante. 
Tu t'imagines? 
Eu cá imagino. 
Há qualquer coisa arrebatadora no contraste.
Por um lado, a sobriedade. Por outro, a irreverência.
Por um lado, a pureza. Por outro, a luxúria.
Por um lado, o recato. Por outro, a sensualidade.
O cumprimento e a transgressão.
O preto e o vermelho.
A submissão e a independência.
Não haja dúvida: uma rapariga de lenço aprumado na cabeça está muito mais sujeita à fantasia. 
Ao devaneio.
À depravação.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Deolinda

No outro dia fomos ver os Deolinda. Em plena Bruxelas.
Foi um grande fon fon fon.
Desta vez até havia bateria e as canções bateram mais forte.
Gosto da Ana Bacalhau. Do seu corpo pequeno. Da sua voz enorme.
Daquela sua maneira de estar em palco como se estivesse numa sala de estar.
Falou em inglês e português, because my French is pathetic.
O meu francês também é patético. Desolée.
A Ana Bacalhau não é pateta nenhuma, mas faz patetices em palco. Não tem medo do ridículo.
Gosto à farta de mulheres assim. E de homens também.
Sem medo. Sem entraves.
A Ana Bacalhau faz e acontece. Abana a cabeça e o corpo, arregaça as mangas, escarra para o lado. Ninguém a trava. Nem sequer a saia travada e muito curta. Ou os saltos muito altos. Ela diz: Agora sim, cantamos com vontade! E eu tenho ganas de me levantar e ir atrás dela. Fazer uma revolução qualquer num lugar qualquer.
A Ana Bacalhau canta: Eu não sei se tu sabes, mas fizeste o meu dia tão bem.
E o dia pôs-se logo bom.
As letras do Pedro Silva Martins são pequenos truques de magia. De repente ficamos carentes e abismados. A ouvir a história de um amor clandestino. A ver uma mariposa, bela e airosa.
As canções que tu farias é uma bela homenagem a António Variações. A Ana Bacalhau pergunta: Que espaço ocupam as canções que não cantaste? E somos nós que dizemos: Ó ai.
Um ó ai nostálgico.
Ligeiramente angustiado.

Perfeitamente português.

Foi tão bom.
Foi tão bem.

Belo movimento perpétuo associativo.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Esse cabelo

No outro dia vi um cato.
Eu disse: Alô. Ele disse: Aloe.
Era um cato Aloe Vera.
Gosto de plantas babosas com propriedades mágicas de regeneração, por isso trouxe-o para casa. O cato Aloe Vera, bonito e eriçado, num vaso verde.
Nesse mesmo dia acabei de ler Esse cabelo da Djaimilia Pereira de Almeida, um livro, também ele, bonito e eriçado. Baboso e regenerador. Para ler devagar.
E passar a pente fino.
A seguir lavei o cabelo. Disse-lhe: Senta-te. E ele sentou-se. Escovei-o, sequei-o, alisei-o. O meu cabelo muito bem comportado, quase liso. 
Fiquei a pensar na Djaimilia e na protagonista da Djaimilia. No seu cabelo crespo, indomável. 
Esse cabelo fala-nos de cabeleireiros, claro. De cabelo curto e comprido, com tranças ou então ganchos ou então lenços. Também nos fala de fotografias, de disfarces de Carnaval, de uma avó negra e de uma avó branca, de uma Angola ao longe, de um Portugal ao perto. E também nos sussurra uma infância, uma adolescência, a Tieta do Agreste, o vento nas ruas de Oeiras.
Na raiz do cabelo está a cabeça, a existência. E eu gostei de passear por aquele cabelo escuro e selvagem, dono do seu próprio destino.
Logo a abrir o livro:

A verdade é que a história do meu cabelo crespo cruza a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indirecta da relação entre vários continentes: uma geopolítica.

No final do dia tirei uma fotografia ao livro e ao cato Aloe Vera. 
Acho que foi uma homenagem às coisas babosas. À geopolítica. À literatura eriçada.
Ao seu poder regenerador.
Não sei.





quarta-feira, 4 de maio de 2016

Uma leitora passa por nós

Estamos dentro da terra. Dentro do metro. Dentro da vida.
Há militares muito bem fardados por aqui. Trazem um boné na cachimónia e uma arma ao colo. Cumprimentam um menino. Apertam-lhe a mão. Dizem: Ça va?
Dá gosto vê-los. São calmeirões e prestáveis. Afastam as metralhadoras para nos deixarem passar nas escadas rolantes. Dizemos: Merci.
Lá vão as pessoas apressadas. Com as suas malas e os seus tiques nervosos. A imaginação dentro do cérebro. Dentro do crânio. Dentro do metro.
Uma bomba na mochila. Uma bomba enfiada no bolso de um casaco ou encolhida a um canto. Em contagem decrescente.
O metro chega, entramos.
Um homem toca violino e nós rodamos os olhos. No sentido dos ponteiros do relógio. Andamos fartos de pedintes. Fartos de violinos. Fartos do medo.
Saímos na estação dos eurocratas. Marchamos todos em sentido, militares e pessoas.
Todos menos um.
Quem?
Aquela ali.
Uma leitora passa por nós. Caminha leve e graciosa com o seu livro de capa preta e sacode o marcador de livros no ar.
Ficamos a observar o marcador de livros. É um retângulo de papel a abanar a cauda.
A leitora nunca olha para o chão nem para as pessoas. Avança com os olhos pousados no livro. Sai da carruagem, mete-se nas escadas rolantes. Atravessa as portas, vira à direita, sobe as escadas.
Ficamos com vontade de seguir aquela leitora. De ler aquele livro.
Qual livro?
Não sabemos. Não deu para ver.
Tinha uma capa preta.
Tinha, não tinha?
Olhamos para trás. A leitora ao fundo, nas escadas rolantes. Virou agora mesmo a página e continua a ler. Um mundo qualquer muito melhor do que este.
O marcador de livros no cimo das escadas. A acenar ao longe.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Karateca no Concurso de Leitura de Cascais

Hoje é a fase final do Concurso de Leitura do Concelho de Cascais.

Os alunos do 3.o ciclo têm pela frente "O caderno vermelho da rapariga karateca". Boa sorte a todos os concorrentes!

Eu e o Bernardo Carvalho estaremos mais logo na Biblioteca São Domingos de Rana para falar com eles.


Yaaaa!

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Oliveirinha

Hoje vi uma oliveira. Estava pousada na florista de esquina. E ainda não era bem uma árvore, era um esboço de árvore. Tinha trinta centímetros de altura. Era uma oliveira minorca.
Eu cantei baixinho: "Oliveirinha da serra, o vento leva a flor".
A oliveira olhou para mim com os seus olhinhos de azeite e respondeu numa voz minúscula:
"Ó i ó ai, só a mim ninguém me leva".
Comovi-me.
Disse-lhe logo: "Eu levo-te". E levei-a mesmo.
Eu e a oliveirinha a cantar pela rua.
Pousei-a no gabinete. Ao lado da Yara Kono.
Acho que se vão dar bem.


terça-feira, 22 de março de 2016

Estava sol


Hoje não vim de metro. Viemos a pé. Eu e ele de mão dada. Estava sol.
Pensei: A primavera já cá canta.
Vi um passarinho pequerruxo. Vi árvores floridas.
Despedimo-nos no cruzamento. Ele foi para um lado, eu fui para o outro.
Uma mensagem no WhatsApp e depois outra: uma bomba no aeroporto. Credo.
Apeteceu-me uma musiquinha alegre. Apercebi-me de que o meu gosto musical é deprimente. Felizmente encontrei uma canção foleira com batuque. Para afastar pensamentos foleiros.
Desci a rua que vai dar a Maalbeek.
As minhas mãos muito soltas, para a frente e para trás.
O passeio cheio de terra. Que chato.
Pensei: Estas obras nunca mais acabam.
Pensei: Vou ficar com as botas todas salpicadas.
Vi várias pessoas paradas no meio da estrada. Traziam telemóveis em punho, estavam a filmar qualquer coisa.
Vi um carro de bombeiros. Vi bombeiros. Vi um grupo de senhoras com véu. Pareciam assustadas.
Interrompi os batuques. O que se passa? Alguém diz: Uma bomba no metro. Um rapaz diz: Que horror!
Recebo outra mensagem. Bélgica em estado de alerta. Toda eu em estado de alerta.
Entrei no edifício. Mensagens por todo o lado. WhatsApp. Messenger. Emails. Mensagens. Os que estão, os que não estão. Eu respondo: Estamos bem. We are OK.
Da minha janela vi a Rue de la Loi a ser evacuada. 
De repente não havia ninguém. Nem sequer um carro. Uma pessoa. Um gatinho.
Só então me ocorreu que podia ter morrido hoje. Naquela carruagem. Naquela estação. Àquela hora.
Mas hoje viemos a pé. Estava sol.
À tarde fomos evacuados. Eu e a Rosa viemos a pé. Passámos em frente à loja portuguesa. Passámos em frente aos frangos assados. Quase não falámos. Viemos dar à Flagey. Depois dissemos adeus. Uma foi para um lado, outra foi para o outro.
E de repente apeteceu-me entrar na livraria. Apeteceu-me comprar um livro. Apeteceu-me comprar chocolates. Comprei um livro e um saquinho de ovos da Páscoa.
Estive a ler na varanda e a comer ovos da Páscoa. Comi um azul, outro castanho, outro cor de rosa, outro verde. Também estive a escrever isto.
Os ovinhos cor de rosa ficam a explodir na boca. É mesmo verdade. Fazem barulho por dentro.
O livro que eu comprei chama-se ICI.
Título original: HERE.

AQUI.

terça-feira, 15 de março de 2016

TEDx Brussels 2016

Ontem fui ao TEDx Brussels 2016. O tema era profundo e futurista. Assim: Deeper Future. Por que não? Ando com sede de ideias e pessoas pra frentex.
Sentei-me na terceira fila e tirei umas notas, comi uns chocolates. Não se esteve mal.
17 oradores, 1500 pessoas, 20 e tal nacionalidades.
Falou-se, claro está, do futuro. O futuro da alimentação, o futuro da segurança, da privacidade, o futuro da igualdade, da medicina, do sistema bancário. O futuro da arquitetura e das cidades. O futuro da cerveja e do amor.
Alguns conceitos novos: receitas climáticas, computadores alimentares, cidades inteligentes, masturdating, citizen lobbying, medicina participativa, casamentos a solo, roupa digital, economia para o bem comum.
Uma das oradoras pôs-se de cabeça para baixo. Em posição vertical invertida. Estava de saltos altos cor de rosa apontados para o teto. Disse: Pensem noutra perspetiva.
Algumas frases: Temos de modificar o ambiente e não as plantas. Temos de democratizar o clima para democratizarmos a alimentação. Temos de amplificar a voz dos doentes. Não há privacidade sem segurança. Precisamos de mais Europa. A diversidade é essencial para a inovação. As empresas privadas têm de cuidar do bem comum. Não precisamos dos homens para nada. Não podemos perder a fé na democracia. Quando as instituições políticas caem, há grandes transformações. Vimos isso com a Jugoslávia. As instituições europeias estão em crise. Um telefone protege muito mais do que uma mala de viagem. Imaginem cidades capazes de falar. Os semáforos vão desaparecer. Quanto mais a sociedade investe na profissionalização, menos beneficia das nossas capacidades. Estamos presos nas nossas profissões, nos nossos sistemas de ensino. Somos espectadores e não atores. Somos consumidores e não cidadãos. A participação cívica é um valor intrínseco. Não basta votar e assinar petições.  Vamos atingir o pico da cultura narcisista. Selfie é o produto do narcisismo. Algumas pessoas morrem a tirar selfies. Narciso também morreu porque se apaixonou por si próprio. If you outsource falling in love, you outsource the essence of love. Without the fall, there is no love. Quem controla o presente, controla o passado. Quem controla o passado, controla o futuro. As cervejarias artesanais estão de volta. Beer with more meaning, more taste, more fun. É possível fazer cerveja a partir de pão feito a partir de cerveja. Os bancos procuram o lucro à custa da sociedade. O dinheiro é um meio e não um fim. A atividade económica tem de servir o bem comum.
Fiquei a saber que uma chave mestre abre todos os elevadores e portões em Nova Iorque. Que os talibãs são muito ativos na sneackernet. Que mais de 4 mil milhões de pessoas não têm acesso à Internet. Que um dia vamos poder imprimir a nossa roupa em casa.
Fiquei a conhecer a Marble Machine. Fiquei com vontade de ler a obra do filósofo croata que tinha umas ideias larocas. Quero conhecer melhor o islandês que faz música a partir de sons de Bruxelas. Por exemplo, sirenes, elevadores, comboios, sinos.
Umas perguntas no ar: Qual é o nosso contributo? Quantas vezes já fizemos a diferença?
O que é a cidade ideal?
As escolas devem estar orientadas para o lucro? Os hospitais devem estar orientados para o lucro? E os bancos? Por que razão estão orientados para o lucro?
O que será o amor no futuro?
No final fiquei baralhada das ideias e andei aos saltinhos por Molenbeek, o bairro mais terrorista e aterrorizado de toda a Europa. Vi crianças a rir, mulheres a conversar. Vi fruta fresca nas mercearias de esquina, laranjas, toranjas, maçãs. Vi o sol a bater nas janelas. Vi pessoas de cá para lá. Vi vários homens carecas no cabeleireiro e isso deu-me vontade de rir. Não tive medo nenhum. Estava numa de participar na cidade. De fazer a diferença. Em total masturdating.
Até tirei uma selfie.

sexta-feira, 4 de março de 2016

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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Chuva miudinha

Ontem desceu aquela chuva miudinha.
Uma chuva quase nada, ligeirinha, molha-tolos.
Tinha saudades dela.
Fico a vê-la pousar.
E não abro um guarda-chuva contra a morrinha.
Não enfio o barruço. Não vale a pena.
A chuva miudinha está em todo o lado.
É um pequeno feitiço a prolongar o dia.
Divirto-me a apanhar as gotas com os dedos e com a boca.
Os pingos esvoaçam por aí como insetos.
Ficam a cair devagarinho com a noite demorada.
Eu própria fico tola e miudinha.
Tenho as mãos frias e gretadas. Doem-me.
São as feridas minúsculas deste inverno.
Chego a casa e faço chá de lúcia-lima.
Escrevo miudinho no meu caderno de inverno.
Palavras minúsculas.
Qualquer coisa que vi, qualquer coisa que ouvi.
A cidade sempre muito escura e fria.
A temperatura rasteirinha.
Escrevo sobre a chuva miudinha, por exemplo.
Palavras quase nada, ligeirinhas, molha-tolos.
A esvoaçar no meu caderno como pequenos insetos.
Não há nada como escrever no inverno.
Contra o frio. Contra a escuridão. Contra a noite demorada.
Tenho as mãos gretadas e a língua dormente.

Queimo sempre a língua a beber chá.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

To kill a mockingbird

Atticus said to Jem one day, "I’d rather you shot at tin cans in the backyard, but I know you’ll go after birds. Shoot all the blue jays you want, if you can hit ‘em, but remember it’s a sin to kill a mockingbird." That was the only time I ever heard Atticus say it was a sin to do something, and I asked Miss Maudie about it. "Your father’s right," she said. "Mockingbirds don’t do one thing except make music for us to enjoy. They don’t eat up people’s gardens, don’t nest in corn cribs, they don’t do one thing but sing their hearts out for us. That’s why it’s a sin to kill a mockingbird.

To kill a mockingbird, Harper Lee

sábado, 20 de fevereiro de 2016

O Nome da Rosa

Li O Nome da Rosa quando ainda não tinha bem idade para ler O Nome da Rosa. 
Ou seja, foi na idade certa. Fiquei logo a perceber o poder da literatura errada. 
Demorei-me várias semanas no século XIV a percorrer o labirinto daquele mosteiro. 
Lembro-me bem dos monges copistas. Daquela moça na cozinha. E, acima de tudo, da biblioteca proibida, no último andar, onde moravam os livros mais perigosos de todos, que se riam sozinhos. 
Os monges diziam-me: Cuidado com a literatura, pequena. Os livros errados provocam o riso e também a morte. No riso está a perversão e o demónio. 
Não te rias, pequena.
Cedo compreendi que os livros também matam. Que a comicidade é uma arma perigosa. 
Com o Umberto Eco aprendi o prazer da leitura. 
Aprendi a cair em tentação.
E a morrer a rir.