quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Uma mulher à janela

O último dia. Tão parecido com os outros. 
Um pouco mais quieto, um pouco mais final. 
Notícias do dia: em Bruxelas não vai haver foguetes. Babum! Para explodir de vez com a esperança. 
Está frescote em Aveiro.
Máximas previstas para hoje: 15 graus. Céu pouco nublado. Vento de intensidade moderada.
Algumas mulheres estão à janela. Uma, duas, três, cinco, sete. 
Umas estendem lençóis, outras sacodem tapetes. Para afastar os espíritos manhosos. 
E lavar a roupa suja.
No chão um resto de chuva. 
Penso no ciclo da água, nas alterações climáticas. 
Eu também sou uma mulher à janela.
No outro dia vimos andorinhas. Numa noite de inverno. Estavam muito bem pousadas num cabo elétrico. Pareciam esculturas, mas não eram esculturas. Eram andorinhas de verdade. 
Foi estranho. 
Andorinhas numa noite de inverno. Tirei-lhes uma fotografia. Sou cruel.
Faço planos dentro da cabeça: passas, vinho, champanhe. 
Faço outros planos dentro da cabeça: umas superstições de trazer por casa. Por exemplo, subir para cima de uma cadeira, guardar a rolha do champanhe, estrear roupa nova.
Para espantar o primeiro dia, qualquer coisa serve.
Fico a pensar nas andorinhas ao frio. Coitadas. Talvez tenham decidido não migrar. 
Faltam nove horas.
Mais coisa, menos coisa.
Já estou em contagem decrescente.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

No final do ano é sempre assim

No final do ano é sempre assim: subimos muito alto. Ficamos suspensos no ar a ver as casas lá em baixo. 
As casas, as estradas, as pontes.

Estamos dentro de um avião dentro das nuvens. 
São nuvens brancas e suaves, não fazem mal a uma mosca.

Ao longe, tudo é bonito: a cidade, as casas, as nuvens.

Ao longe, também o tempo é bonito: janeiro, fevereiro, março.

Um ligeiro peso nas pálpebras. No pescoço. Na consciência. 
Uma ressaca do mundo inteiro. Um cansaço antigo.

No final do ano é sempre assim: fechamos os olhos para o tempo. Interrompemos o mundo a meio de uma frase, a meio de um segundo.

Estamos dentro de um sono dentro de um avião dentro do tempo, a passear pelas nuvens. 
Descalços e descontinuados.

De súbito, uma turbulência qualquer no corpo. Uma ansiedade minúscula alinhada à esquerda.

Abrimos os olhos e vemo-la: a cidade do Porto. As casas, as estradas, as pontes.

Ao longe, a cidade invicta é bonita.
A beleza tranquila da distância.

Pousamos devagar no mundo. Como pequenos deuses. Primeiro os pés e depois a cabeça.
Só então o tempo recomeça.
O tempo e o mundo.

2016 ao virar da esquina. 

Mais um ano, mais uma viagem. 
O tempo ao longe.

sábado, 19 de dezembro de 2015

A Guerra das Estrelas e das Mulheres

Não tarda vou conhecer o novo episódio da Guerra das Estrelas. 
A Força está comigo e a nostalgia também. 
Nos últimos dias andei a rever os episódios do século passado, com o Luke Skywalker e o Harrison Ford.
A abrir, duas naves vagueando pelo Espaço. Logo a seguir, a corajosa princesa Leia, impecavelmente vestida de branco. Traz uma arma na mão e duas empolgantes tranças à volta das orelhas. 
Quem não se lembra disso? 


É a princesa guerreira, capaz de sacrificar o seu próprio planeta por valores mais altos. 
Atenção, universo: a princesa Leia é do caneco. 

Infelizmente para a guerreira e para o império, a história não é bem sobre ela. Já se sabe que as mulheres e os seus pipis são um grande desequilíbrio para a Força. 
O papel de Leia é o de uma princesa sensível, que inspira os rebeldes e não teme o inimigo. 
A mensagem mais famosa do universo é a de uma mulher em desespero: Help me, Obi Wan Kenobi, you’re my only hope.

A Guerra das Estrelas, of course, é uma guerra de pilas e sabres luminosos. Nela participam Luke Skywalker e Obi-Wan Kenobi, o Capitão Solo e o seu companheiro Chewbacca, o mestre Yoda e o medonho Darth Vader.
Não haja dúvida: há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, o universo inteiro já era masculino.

Num momento de apuros, quando Leia começa a dar ordens aos moços, o Capitão Solo sente o seu orgulho ferido. Da boca de Harrison Ford sai um comentário do estilo: Se pudermos evitar mais conselhos femininos, talvez dê para sairmos daqui.
A minha alma irritou-se e virou-se para o lado negro. 
A certa altura, um homem dirige-se a Leia de sorrisinho matreiro. Diz algo do tipo: Well, what do we have here? Leia encolhe-se, porque é uma princesa vulnerável. 
Por esta altura, a minha alma começou a arfar como o Darth Vader.

O cúmulo desta representação dá-se no episódio VI, quando a princesa guerreira surge escravizada e acorrentada aos pés de Jabba The Hutt, ostentando o corpo por baixo de um espectacular biquini metalizado. Nada mais indigno para uma princesa guerreira. 

A bem dizer, os maus da fita passam a vida a capturar a Princesa, que felizmente pode sempre contar com Skywalker e amigos. 
À única mulher protagonista cabe definir estratégias, encorajar os rebeldes e desafiar o poder instalado. Mas não se engane o espectador: a Princesa Leia não anda por aí a manobrar naves e sabres.

Num momento de fraqueza, a Força abandona-a completamente. Han diz-lhe: Estás a tremer e, logo a seguir, beija-a. Quando ela diz: I love you, ele responde: I know. Grande homem. Pobre mulher. A dominar o romance do princípio ao fim está Harrison Ford e a sua luminosa pila.

A Força está com a princesa Leia, mas não assim com tanta força.

Talvez o novo episódio não se situe numa galáxia tão distante no que toca às mulheres. 
É esta a minha exigência. 
My only hope.

Apesar de tudo isto, adoro o penteado da princesa Leia. 

Na Bélgica dava-me um jeitão. 
Sempre abafava os sons furiosos do trânsito. 
E combatia com eficácia este Inverno.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Facebook, o livro dos rostos (II)

Sei lá. Era domingo. Estava frio. Fiz bolachas de chocolate no forno. E depois abri a janela para o mundo e também uma página no Facebook, o livro dos rostos.
Foto de perfil: nhec.
Pode ser a karateca. Não é bem o meu rosto, eu sei, mas também é um rosto meu.
As bolachas de chocolate ficaram assim assim. Não tenho grande jeito.
Mil e uma perguntas. Respondi Não a muitas delas.
Quer que o Facebook aceda aos seus contactos? Não.
Quer que os amigos dos amigos não-sei-quê na sua página? Não.
Quer que os seus amigos não-sei-quê das tags? Não.
Logo a seguir deu-me a timidez. Não disse nada.
Fiquei ali especada a olhar e a comer bolachas. Têm fermento a mais.
Há muito tempo escrevi: Abomino o livro dos rostos.
Mas agora passou-me a birra, acho. As pessoas mudam.
Mudam, não mudam?
Talvez.
Quarenta pedidos de amizade. Aceito? Não aceito?
Os rostos dos outros.
Assustei-me. Lembrei-me. Emocionei-me.
Olha-me esta moça! Casou-se no mês passado. Que bonita.
Onde ficou essa amizade? Não me lembro.
Uma vez acampámos juntas. Não sabíamos montar a tenda, estava a chover. Tínhamos 13 anos.
Lama por todo o lado. Deram-me uma alcunha qualquer porque eu era sempre a última a chegar. Talvez Turbo ou Racing. Não sei.
Fui a última a chegar ao livro dos rostos.
E, sinceramente, não me ocorre dizer nada.


Voilà, c'est ça !


Cheguei.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Abóbora

Gosto da palavra e do fruto.
Em todas as línguas é doce. E abobadada.
Pumpkin. Potiron. Abóbora.
Gosto da forma e do conteúdo: a casca dura e desajeitada, a polpa cor de laranja.
É um fruto profundo. Talvez oculto.
Está cheio de sementes e sussurros.
Dentro de uma abóbora está a carroça da cinderela e também a bruxa má. Com a sua vassoura, a sua loucura.
Cuidado com as abóboras, menina.
Têm uma magia bonita e uma magia feia.
Apesar disso, ou por causa disso, gosto à farta de pevides.
E de tarte de abóbora. Compota de abóbora.
Óleo de sementes de abóbora. Hmmm.
É um oleo escuro e denso. Como o meu sangue.
Qualquer coisa acontece quando como este fruto. Uma esperança qualquer por dentro.
Eu como pevides e penso: Talvez tudo mude. Oxalá o mundo avance. Oxalá fique quieto.
Temos coisas em comum, eu e a abóbora.
Também eu sou cinderela e bruxa. Desajeitada e oculta.
Além disso, tenho cabeça de abóbora. Sou bastante abobada.


E adoro laurear a pevide.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Amor ortográfico: Times New Roman

É impossível não sentir abstruso enfado quando se lê um texto em Times New Roman. Tudo perde o encanto e o sentido quando escrito neste tipo de letra. Até os textos do Valério Romão ficariam desengraçados se andassem por aí nessa figura.
Ouçam bem: a fonte Times New Roman há de ser responsável por muitos males do mundo.
É que as palavras, quando se metem com esse tipo, parecem umas solteironas de cabelo atado. Sentam-se muito direitas à mesa, cheias de tiques e traços, e nunca falam de boca cheia, nunca dão um arroto ou um pum. São palavras chatas. Muito bem sentadas e alinhadas. Raramente pensam. Raramente pecam. São umas tristes.
Nenhum leitor as quer assim. Nenhum leitor lhes vai dirigir os olhos ou a alma. As palavras vestidas de Times New Roman morrem virgens.
E este poderá ser um grande mal do mundo: o asco do ser humano por este tipo rígido. 
As letras, quando se vestem de Times New Roman, não sentem paixão pela vida e sugam a motivação dos leitores mais vulneráveis. 
A narradora deste texto, por exemplo, fica logo murcha e incapaz.

Antes o Comic Sans que, apesar de velho e desajeitado, é só um tipo sem ambição nem grande noção das coisas. Coitado.