quarta-feira, 21 de maio de 2008

Hedera helix

Se eu fosse uma árvore, seria enorme.
Maior do que as coisas.
E cresceria. Sempre.
Para baixo. Para cima.
Oblíqua. Antígona. Nua.
Em espiral. Trepadeiramente.
Teria os pés na terra. E a cabeça nas nuvens.
O real e o sonho num só corpo.
As mãos seriam espalmadas. Estreladas. Vasculares.
Respiraria profundamente. Até ao final da terra.
Seria naturalmente calada, misteriosa.
Feminina.
E inspiraria o sol inteiro.
Para expirar oxigénio.
E purificar a vida.

Há qualquer coisa de alquímico nisto.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Diálogo sobre o ser - Parte VII

- Filha, não interessa copiar os outros.
- Não?
- Não.
- Importante é sermos originais.
- Originais?
- Sim.
- Tu és original?
- Sim.
- Isso é importante?
- Claro.
- Porquê?
- Porque somos únicos.
- Únicos?
- Únicos.
- Então para que servem os outros?
- Para vivermos em comunidade.
- Em comunidade?
- Sim, para nos ajudarmos uns aos outros.
- Tu ajudas os outros?
- Ajudo.
- Os copistas também ajudam.
- Talvez. Mas tu podes ajudar os outros de mil e uma maneiras.
- De mil e uma maneiras?
- Exactamente! De mil e uma maneiras.
- Como as mil e uma noites?
- Por exemplo! A Sherazade também ajudava o rei persa.
- Ajudava?
- Sim. Contava histórias sobre outras pessoas.
- Ela era copista?
- Não. Era contadora de histórias.
- Quem conta uma história não copia?
- Não. Contar não tem nada a ver com copiar!
- Não?!
- Não.
- Mas as histórias da Sherazade não eram dela.
- Claro que eram.
- Não eram, não. Eram histórias sobre outras pessoas.
- Que ela inventou.
- Que ela inventou?!
- Sim.
- Ela inventou pessoas?
- Sim.
- Para quê?
- Para contar as suas vidas.
- Vidas que não existem?
- A partir do momento em que Sherazade contou as histórias, as personagens passaram a existir.
- Onde?
- No mundo da fantasia.
- A vida das personagens interessa?
- Claro!
- Para quê?
- Para sermos criativos.
- Para sermos originais?
- Exactamente.
- As personagens são mais importantes do que as pessoas?
- Não.
- Então, as pessoas são mais importantes do que as personagens?
- Claro. São os protagonistas da vida real.
- O real é importante?
- É o mais importante.
- E, no entanto, não é original.
- Não, não é.
- Então, é melhor ser copista do que original.

(continua)

terça-feira, 13 de maio de 2008

O homem reflectido

História paralela para um homem original.
Para o Johnny, claro.

Vestia camisa branca. Sempre branca. E gravata. Uma qualquer. Com ou sem riscas. Com ou sem pintas. Sem muitas cores. Nem muitas formas. Não gostava de fantasiar o peito. Chamemos-lhe: homem original.
As mãos eram ágeis e o nó saía sempre igual: decidido, destemido, perfeito. Lembrava a arte dos pescadores: o nó de oito que ninguém sabe dar.
Tudo isto se passava em frente ao espelho.
Ia ao cinema. O homem original.
Gostava da arte. Da vida. Da arte da vida (e vice-versa). Da subtileza das coisas. De histórias. Gostava do ecrã. Da sala sempre negra, experimental.
Ia ao cinema.
No carro tirava a gravata com a pressa de quem se liberta. Da forca. Respirava melhor sem ela (sem a gravata nem a forca). Era importante respirar no cinema. Na vida, não. No cinema, sim.
Naquele dia, entrou na sala negra para ver um filme, mas afinal, em vez de um filme, viu-se a si próprio. Um fenómeno estranho. Mas curioso. O homem original interessou-se.
O ecrã era, de repente, um espelho. Ou até uma lupa, porque a sua imagem reflectida era muito maior do que ele próprio, o homem original. O homem reflectido dava o nó de gravata. O tal nó decidido, destemido, perfeito.
O homem original colocou a seguinte hipótese: se o homem reflectido estava a dar o nó de gravata em frente ao espelho, talvez que ele, o homem original, fosse antes o homem reflectido e não o original. Isto entusiasmava-o. Se ele era a vida paralela, gostaria de saber a vida original. A do outro. A do homem reflectido (corrijo: original).
Depois, ao longo do filme, colocou outra hipótese: talvez que ele, o homem da sala escura, o homem original ou reflectido (não interessa) fosse as duas vidas ao mesmo tempo.
Este pensamento enriquecia-o: ao homem da sala escura. Duplicava-o. Literalmente.
Sempre quisera ter uma vida dupla.
Durante vários minutos ficou a pensar na vida. Nessa outra vida, paralela ou real. Disse:
Este é o meu filme e saiu da sala escura. Para o realizar. Para o viver. Para ser.
Tinha visto tantos filmes, que era difícil ser original. Não conseguiu resistir à tentação e decidiu ser serial killer. O homem original (ou reflectido).
Mas não um serial killer qualquer.
De vez em quando tinha vontade de matar, era preciso racionalizar essa vontade.
Decidiu: eu sou um assassino de pessoas que não dão um bom filme.
No seu modesto entender, eram pessoas desnecessárias. As que não davam um bom filme. Não tinham vidas duplas, não tinham beleza nem identidade em nada do que faziam. De repente, percebeu que, na sua vida (na de homem original ou reflectido), andava rodeado de pessoas que davam bons filmes. Era um critério como outro qualquer. Mais legítimo do que muitos outros critérios. As outras pessoas não tinham arte. Era preciso acabar com as pessoas sem arte.
O homem original ou reflectido começou a gostar da sua vida dupla.
Saiu do cinema de rompante. Caminhava rápido, tinha pressa.
Era preciso comprar uma arma.
Entrou no carro. Pensou.
Olhou para a gravata. Estava amarrotada e deitada no lugar do morto.
Repetiu: Lugar do morto.
Olhou para as mãos (ágeis) e pegou na gravata. Não tinha riscas nem pintas.
Era uma arma interessante.
O homem partiu.
Para a vida.
A paralela (ou original).