quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

2020


 Recapitulando. 

2020: a propagação da maleita e do medo, o tique nervoso do álcool-gel, esta nova aversão ao toque, as ruas desertas, a solidão. Mas também os abraços do Henrique, os meus filhos a pular no sofá, a sensação de mestria quando todos dormem, mais a poesia violenta do Luís Miguel Nava que me beliscou em certas horas.

Tenho pensado muito neste verso dele: “a manhã espanca a praia”.

Não vi a praia uma única vez, mas penso nela todos os dias. Também não vi o mar uma única vez. 

Dei um mergulho num lago artificial. Dei um mergulho num lago a sério. 

Voltei ao trabalho, mas fiquei em casa. Passei a maior parte dos dias na sala de estar, que agora também é o nosso escritório.

O mais novo caiu da cama. O do meio caiu do fraldário. O mais velho caiu da bicicleta.

Nasceu o Desvio, a primeira novela gráfica.

Brexit. Joe Biden. Bielorrússia.

Voltei a ouvir música. Voltei a ouvir podcasts. Voltei a ver séries.

Os mais novos começaram a ir à creche. O mais velho começou a ir à escola.

Toda a gente começou a usar máscaras. Primeiro as de papel. Depois as de tecido.

No início não percebíamos bem as regras. Se podíamos sair de casa, se devíamos usar máscara na rua, se nos podíamos sentar nos bancos de jardim.

Quino. Maradona. Morricone. 

Comprei um blusão branco. Comprei uns ténis vermelhos. Fiz óculos novos.

Fui finalmente ao dentista, que afinal era uma dentista. Os óculos da dentista eram parecidos com os meus óculos novos, mas mais bonitos do que os meus óculos novos.

A explosão em Beirut. Os arco-íris nas janelas. Black lives matter.

Emagreci um bocadinho. Escrevi um bocadinho. Li um bocadinho: Lydia Davis, Vergílio Ferreira, Matilde Campilho.

O mais novo começou a dormir melhor. O mais velho largou as fraldas. O do meio foi picado por uma vespa.

Tive uma crise de costas. Tive uma crise existencial. Tive dores de garganta. Tive febre e tosse e cagufa. Fiz o teste à Covid-19, mas não recebi os resultados. A médica também não. Fiz quarentena na mesma.

Luís Sepúlveda. Sean Connery. Eduardo Lourenço.

Pisei um enorme cocó de cão. Deixei cair as chaves no buraco do elevador. 

Não tomei banho todos os dias. Não dormi uma única noite seguida.

Li Adília Lopes, Ana Hatherly, Adrienne Rich, Annie Ernaux. Reparo agora que os nomes destas mulheres começam todos por A. Acho que não fiz de propósito.

O nosso aspirador deu o berro. A varinha mágica também. A caldeira do prédio também. Passamos uma semana sem elevador. Passei uma semana com o mais novo no hospital.

As manifestações em Hong Kong. Os incêndios na Austrália. 

O mais velho fez três anos. Os mais novos já abrem gavetas. Montámos uma árvore de Natal, que é um pinheirinho todo torto.

2020: um ano para esquecer; um ano para recordar. O tempo avançou muito depressa e também muito devagar; as semanas e os meses passaram a correr, mas os dias (e as noites) nunca mais acabavam. Tudo mudou de repente. E no entanto a sensação que fica é que estamos exatamente onde estávamos há um ano. Como se nada tivesse evoluído. Como se o tempo não tivesse passado. 

E no entanto ele passou. O tempo passa sempre. E nós estamos todos diferentes.

A barriga da Isabel, o sorriso da Kamala Harris, as fotos que a minha mãe me envia com o nascer do sol.

Mais um verso do Luís Miguel Nava: “As imagens saltam em descargas”. 

As horas também, digo eu. Os dias. Os anos.

Estou para aqui toda desgrenhada a olhar para as descargas de luz da nossa árvore de Natal e só quero mais disto. Viver mais.

Amar mais. Dormir mais. Cuidar mais. Ler mais. Escrever mais. 

Tudo mais, por favor. Exceto aquelas coisas que queremos todos muito menos, claro.


2021, puxa-te à calma. Deixa a malta respirar, ó.


(Foto do pinheirinho todo torto em “O gnu e o texugo”, Madalena Matoso)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O Pai Natal existe

 Bom... Se o espírito espanto deixar, hei de comer um Pai Natal de chocolate. Hei de despi-lo à bruta e rasgar-lhe o fato cintilante. Hei de arrancar-lhe a cabeça com uma dentada e espreitar-lhe o crânio oco de ideias. 

Coitado do Pai Natal. Já ninguém acredita nele.

Não me lembro de alguma vez ter escrito uma carta ao Pai Natal. 

Sempre soube que o Pai Natal era o meu pai. Ele sentado à mesa a fumar e a beber whisky, e eu e os meus primos a chamar por ele: “Ó Pai Natal, ó Pai Natal!” 

O meu pai a fazer-nos sofrer com a espera, a inventar desculpas (“Deve estar muito trânsito hoje”). 

Este ano não tenho Natal nem o melhor Pai Natal de todos, mas pela primeira vez escrevi-lhe uma carta. Começa assim: “O Pai Natal existe e é o meu pai.” E é também a minha mãe. Penso nela todos os dias, agradeço-lhe todos os dias. Ser filha não é fácil, mas ser mãe é mais difícil. 

Hei de comer um Pai Natal e pensar na minha mãe, que sempre partiu estes Pais Natais com um só murro e uma só gargalhada. Eu e o meu irmão comíamos os pedaços de chocolate e ríamo-nos à farta do Pai Natal reduzido a cacos. 

Este ano, como toda a gente, não tenho Natal, não tenho a família, mas tenho um Pai Natal de chocolate. 

Hei de dar-lhe um valente murro e comê-lo com fúria e esperança. No fim hei de fazer uma bolinha com o papel de prata.

Não sei porquê, mas adoro essa parte de fazer a bolinha com o papel de prata.



(Na foto um pormenor da montra de Natal de Le Typographe.)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Desvio no Expresso

Puxa! Que exagero!

 "Desvio" é um dos 20 melhores livros do ano, no Expresso!



"A estreia na banda desenhada desta dupla de autores resultou num dos livros deste ano a merecer eternidade.

(...) Dir-se-á que é juvenil, mas o modo como aborda as emoções, a sensação de enfrentamento com o mundo e uma cautela amedrontada perante o futuro fazem dele um livro sem limites."

(Sara Figueiredo Costa)



terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Making of do Gnu!

 “Making of” do livro “O Gnu e o Texugo”.


Como é que cheguei a este texto? E como é que a Madalena Matoso chegou aos desenhos?


Das primeiras ideias à saída da gráfica, passando pelos cadernos arejados da Madalena Matoso e começando pelo texto. Assim: “No início pensei num buraco”. É mesmo verdade.


https://www.planetatangerina.com/pt-pt/making-of-do-livro-o-gnu-e-o-texugo-parte-1/?fbclid=IwAR3nKp5VriHfgOkobXuJQNHUCno1-4lfY-F0uL69pzxEStsb9ReB_aG7iBg

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Pensar europeiamente

Hoje de manhã, depois de deixar os minorcas na creche, enfiei a máscara no focinho e os auscultadores nos ouvidos, e vim pela rua fora a perscrutar o último episódio do Governo Sombra. 

Logo a abrir o programa, a propósito de uma situação clássica das redes sociais em que uma frase ofensiva é tirada do seu contexto, ouvi o Ricardo Araújo Pereira dizer uma frase que eu também vou tirar do contexto:

“Nós aqui no Governo Sombra temos sido muitas vezes acusados de, em matéria de liberdades de expressão, pensar europeiamente.”

E de seguida discursa sobre a liberdade de expressão, definindo-a como sendo, por um lado, o direito de dizermos "coisas que objetivamente têm o potencial para ofender outras" e, por outro, o direito de as outras pessoas "se sentirem ofendidas”, advertindo logo a seguir que, no espírito dessa mesma liberdade de expressão, as pessoas ofendidas “não têm o direito de não ser ofendidas e também não têm o direito de, por uma interpretação, seja ela correta ou errada, por má fé ou ingenuidade, mandar calar" quem as ofendeu.

Continuei rua fora a auscultar o Governo Sombra enquanto pensava europeiamente que “pensar europeiamente” é de facto isso mesmo. É reconhecer que ninguém manda calar ninguém, que ninguém está acima dos direitos e liberdades do outro. 

Por outras palavras, pensar europeiamente é admitir que somos todos iguais perante a lei. É acreditar nessa igualdade e também na liberdade de expressão e em todos os outros direitos e liberdades que parecem tão evidentes, mas afinal são tão frágeis.

Numa altura em que estamos tão fartos disto tudo e tão cheios de medos e dúvidas, a tentação de ceder à fúria, à repulsa e à divisão é grande. Numa altura em que o mundo inteiro se vê a braços com uma pandemia sem precedentes e um capitalismo indomável, não é demais falar da Europa e de tudo o que ela significa cá dentro e lá fora. A extrema direita é uma ameaça real a tudo o que se construiu na União que, embora imperfeita, é o que há de melhor no mundo.

Hoje faltam-nos os beijos e os abraços, mas não é difícil imaginar um futuro mais ou menos próximo em que nos falte muito mais do que isso: água, comida, produtos de higiene, medicamentos, combustíveis, transportes públicos, oxigénio.

Pensar europeiamente é defender a Europa, e eu cá sou europeia até à medula.

Quero viver num espaço feito de liberdade, solidariedade, diversidade e justiça. Onde todos temos direito à vida, à dignidade, à segurança, à educação. Onde o trabalho infantil, a tortura e a escravidão não são tolerados. Onde temos direitos como trabalhadores, como pacientes, como consumidores, como passageiros, como turistas, como contribuintes, como arguidos. Onde os mais vulneráveis são protegidos: os mais velhos, os mais novos, as pessoas com deficiência. Onde a arte e a ciência são livres. Onde a diversidade cultural e étnica é respeitada. Onde cada um tem a orientação sexual, partidária e religiosa que quiser. Onde nos tribunais todo e qualquer cidadão é considerado inocente até prova em contrário. Onde todos os dias se luta contra a discriminação, o racismo, a xenofobia, a violência. Onde todos os dias se luta pela igualdade, pela sustentabilidade, pelo ambiente. Onde os nossos dados são protegidos. Onde todos nós podemos atuar, acedendo a informação, tomando iniciativa, assinando petições, recorrendo a tribunais, e também elegendo e sendo eleitos.

É verdade que a Europa não é (ainda?) esse espaço de que falei, mas se olharmos para o resto do mundo, a União Europeia é a que está mais próxima dessa realidade.

Pensar europeiamente é partilhar desses valores e é sobretudo defendê-los quando alguém os infringe ou ameaça.

E por isso vos digo que, enquanto eu tiver o direito a eleger, não hei de votar em quem não partilha dos valores europeus. Não hei de votar em quem incita ao ódio e à divisão. Em quem usa a violência verbal  no lugar da diplomacia. Em quem discrimina em vez de acolher. Em quem mete o dedo na ferida e identifica inimigos sem apresentar um único plano de resposta.

Se há coisa que esta pandemia veio demonstrar é que devemos ter um plano. E é este o meu plano: Europa forever.

Claro que há coisas (tantas coisas!) a melhorar. Todos os dias assistimos à miséria, à violência, à imoralidade, à injustiça, à desigualdade, à fraude. Se calhar já vamos tarde para travar as alterações climáticas e o apocalipse.

Mesmo assim. 

Mesmo que isto dê tudo errado e um dia destes não haja água nem comida nem oxigénio para todos, quero ser representada por alguém que opte pela cooperação e pelo diálogo.

Acredito numa mudança construtiva. Acredito que, em vez da fúria e do ataque, precisamos de ponderação. Acredito numa mudança positiva feita por cada um de nós. Quando pensamos nas consequências políticas, económicas, sociais e ambientais das nossas escolhas. Quando optamos por certos serviços e produtos, quando resistimos ao facilitismo, ao consumismo, ao populismo. Quando lemos, questionamos, elegemos e exigimos.



Tenho sempre a sensação de que não sabemos muito sobre a União Europeia. Não acompanhamos o dia a dia nem sequer os grandes feitos. Somos tão autocríticos e europeus, que nem falamos das nossas conquistas.

Mas ao contrário do que pensamos, com todos os solavancos e incoerências, indícios de corrupção e indecência, a Europa tem avançado na boa direção. Só em 2020 foram assinados vários contratos para a aquisição de dois mil milhões de doses de uma potencial vacina contra o coronavírus; foi apresentado um pacto ecológico que pretende, entre muitas outras coisas, tornar o nosso sistema alimentar sustentável e eliminar completamente as emissões de gases com efeito de estufa até 2050; está a ser negociada uma diretiva que tenciona assegurar salários mínimos adequados para todos os trabalhadores europeus; foram aprovados vários documentos estratégicos sobre igualdade de género, migração e asilo, e luta contra o racismo; e provavelmente não estou a referir realizações tão ou mais importantes porque não acompanho assim muito a máquina europeia.

Bem sei que a Europa é lenta e burocrática. Mas quando falamos, por exemplo, de um instrumento de recuperação na ordem dos 700 mil milhões de euros para relançar a economia depois do vírus, é difícil pensar num acordo que não envolva muitas conversações e muita papelada.

O planeta é a prova concreta de que a vida não é uma corrida de velocidade, é um trabalho de resistência.

Há coisas vergonhosas a passarem-se na Europa. No mar Mediterrâneo, na Hungria, na Polónia, em todo o lado.

Mas quem vai gerar a mudança não são são os extremistas e arruaceiros. São os que resistem, os que acreditam, os que cooperam.

Os que pensam europeiamente.