quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Pensar europeiamente

Hoje de manhã, depois de deixar os minorcas na creche, enfiei a máscara no focinho e os auscultadores nos ouvidos, e vim pela rua fora a perscrutar o último episódio do Governo Sombra. 

Logo a abrir o programa, a propósito de uma situação clássica das redes sociais em que uma frase ofensiva é tirada do seu contexto, ouvi o Ricardo Araújo Pereira dizer uma frase que eu também vou tirar do contexto:

“Nós aqui no Governo Sombra temos sido muitas vezes acusados de, em matéria de liberdades de expressão, pensar europeiamente.”

E de seguida discursa sobre a liberdade de expressão, definindo-a como sendo, por um lado, o direito de dizermos "coisas que objetivamente têm o potencial para ofender outras" e, por outro, o direito de as outras pessoas "se sentirem ofendidas”, advertindo logo a seguir que, no espírito dessa mesma liberdade de expressão, as pessoas ofendidas “não têm o direito de não ser ofendidas e também não têm o direito de, por uma interpretação, seja ela correta ou errada, por má fé ou ingenuidade, mandar calar" quem as ofendeu.

Continuei rua fora a auscultar o Governo Sombra enquanto pensava europeiamente que “pensar europeiamente” é de facto isso mesmo. É reconhecer que ninguém manda calar ninguém, que ninguém está acima dos direitos e liberdades do outro. 

Por outras palavras, pensar europeiamente é admitir que somos todos iguais perante a lei. É acreditar nessa igualdade e também na liberdade de expressão e em todos os outros direitos e liberdades que parecem tão evidentes, mas afinal são tão frágeis.

Numa altura em que estamos tão fartos disto tudo e tão cheios de medos e dúvidas, a tentação de ceder à fúria, à repulsa e à divisão é grande. Numa altura em que o mundo inteiro se vê a braços com uma pandemia sem precedentes e um capitalismo indomável, não é demais falar da Europa e de tudo o que ela significa cá dentro e lá fora. A extrema direita é uma ameaça real a tudo o que se construiu na União que, embora imperfeita, é o que há de melhor no mundo.

Hoje faltam-nos os beijos e os abraços, mas não é difícil imaginar um futuro mais ou menos próximo em que nos falte muito mais do que isso: água, comida, produtos de higiene, medicamentos, combustíveis, transportes públicos, oxigénio.

Pensar europeiamente é defender a Europa, e eu cá sou europeia até à medula.

Quero viver num espaço feito de liberdade, solidariedade, diversidade e justiça. Onde todos temos direito à vida, à dignidade, à segurança, à educação. Onde o trabalho infantil, a tortura e a escravidão não são tolerados. Onde temos direitos como trabalhadores, como pacientes, como consumidores, como passageiros, como turistas, como contribuintes, como arguidos. Onde os mais vulneráveis são protegidos: os mais velhos, os mais novos, as pessoas com deficiência. Onde a arte e a ciência são livres. Onde a diversidade cultural e étnica é respeitada. Onde cada um tem a orientação sexual, partidária e religiosa que quiser. Onde nos tribunais todo e qualquer cidadão é considerado inocente até prova em contrário. Onde todos os dias se luta contra a discriminação, o racismo, a xenofobia, a violência. Onde todos os dias se luta pela igualdade, pela sustentabilidade, pelo ambiente. Onde os nossos dados são protegidos. Onde todos nós podemos atuar, acedendo a informação, tomando iniciativa, assinando petições, recorrendo a tribunais, e também elegendo e sendo eleitos.

É verdade que a Europa não é (ainda?) esse espaço de que falei, mas se olharmos para o resto do mundo, a União Europeia é a que está mais próxima dessa realidade.

Pensar europeiamente é partilhar desses valores e é sobretudo defendê-los quando alguém os infringe ou ameaça.

E por isso vos digo que, enquanto eu tiver o direito a eleger, não hei de votar em quem não partilha dos valores europeus. Não hei de votar em quem incita ao ódio e à divisão. Em quem usa a violência verbal  no lugar da diplomacia. Em quem discrimina em vez de acolher. Em quem mete o dedo na ferida e identifica inimigos sem apresentar um único plano de resposta.

Se há coisa que esta pandemia veio demonstrar é que devemos ter um plano. E é este o meu plano: Europa forever.

Claro que há coisas (tantas coisas!) a melhorar. Todos os dias assistimos à miséria, à violência, à imoralidade, à injustiça, à desigualdade, à fraude. Se calhar já vamos tarde para travar as alterações climáticas e o apocalipse.

Mesmo assim. 

Mesmo que isto dê tudo errado e um dia destes não haja água nem comida nem oxigénio para todos, quero ser representada por alguém que opte pela cooperação e pelo diálogo.

Acredito numa mudança construtiva. Acredito que, em vez da fúria e do ataque, precisamos de ponderação. Acredito numa mudança positiva feita por cada um de nós. Quando pensamos nas consequências políticas, económicas, sociais e ambientais das nossas escolhas. Quando optamos por certos serviços e produtos, quando resistimos ao facilitismo, ao consumismo, ao populismo. Quando lemos, questionamos, elegemos e exigimos.



Tenho sempre a sensação de que não sabemos muito sobre a União Europeia. Não acompanhamos o dia a dia nem sequer os grandes feitos. Somos tão autocríticos e europeus, que nem falamos das nossas conquistas.

Mas ao contrário do que pensamos, com todos os solavancos e incoerências, indícios de corrupção e indecência, a Europa tem avançado na boa direção. Só em 2020 foram assinados vários contratos para a aquisição de dois mil milhões de doses de uma potencial vacina contra o coronavírus; foi apresentado um pacto ecológico que pretende, entre muitas outras coisas, tornar o nosso sistema alimentar sustentável e eliminar completamente as emissões de gases com efeito de estufa até 2050; está a ser negociada uma diretiva que tenciona assegurar salários mínimos adequados para todos os trabalhadores europeus; foram aprovados vários documentos estratégicos sobre igualdade de género, migração e asilo, e luta contra o racismo; e provavelmente não estou a referir realizações tão ou mais importantes porque não acompanho assim muito a máquina europeia.

Bem sei que a Europa é lenta e burocrática. Mas quando falamos, por exemplo, de um instrumento de recuperação na ordem dos 700 mil milhões de euros para relançar a economia depois do vírus, é difícil pensar num acordo que não envolva muitas conversações e muita papelada.

O planeta é a prova concreta de que a vida não é uma corrida de velocidade, é um trabalho de resistência.

Há coisas vergonhosas a passarem-se na Europa. No mar Mediterrâneo, na Hungria, na Polónia, em todo o lado.

Mas quem vai gerar a mudança não são são os extremistas e arruaceiros. São os que resistem, os que acreditam, os que cooperam.

Os que pensam europeiamente.