quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Uma mulher à janela

O último dia. Tão parecido com os outros. 
Um pouco mais quieto, um pouco mais final. 
Notícias do dia: em Bruxelas não vai haver foguetes. Babum! Para explodir de vez com a esperança. 
Está frescote em Aveiro.
Máximas previstas para hoje: 15 graus. Céu pouco nublado. Vento de intensidade moderada.
Algumas mulheres estão à janela. Uma, duas, três, cinco, sete. 
Umas estendem lençóis, outras sacodem tapetes. Para afastar os espíritos manhosos. 
E lavar a roupa suja.
No chão um resto de chuva. 
Penso no ciclo da água, nas alterações climáticas. 
Eu também sou uma mulher à janela.
No outro dia vimos andorinhas. Numa noite de inverno. Estavam muito bem pousadas num cabo elétrico. Pareciam esculturas, mas não eram esculturas. Eram andorinhas de verdade. 
Foi estranho. 
Andorinhas numa noite de inverno. Tirei-lhes uma fotografia. Sou cruel.
Faço planos dentro da cabeça: passas, vinho, champanhe. 
Faço outros planos dentro da cabeça: umas superstições de trazer por casa. Por exemplo, subir para cima de uma cadeira, guardar a rolha do champanhe, estrear roupa nova.
Para espantar o primeiro dia, qualquer coisa serve.
Fico a pensar nas andorinhas ao frio. Coitadas. Talvez tenham decidido não migrar. 
Faltam nove horas.
Mais coisa, menos coisa.
Já estou em contagem decrescente.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

No final do ano é sempre assim

No final do ano é sempre assim: subimos muito alto. Ficamos suspensos no ar a ver as casas lá em baixo. 
As casas, as estradas, as pontes.

Estamos dentro de um avião dentro das nuvens. 
São nuvens brancas e suaves, não fazem mal a uma mosca.

Ao longe, tudo é bonito: a cidade, as casas, as nuvens.

Ao longe, também o tempo é bonito: janeiro, fevereiro, março.

Um ligeiro peso nas pálpebras. No pescoço. Na consciência. 
Uma ressaca do mundo inteiro. Um cansaço antigo.

No final do ano é sempre assim: fechamos os olhos para o tempo. Interrompemos o mundo a meio de uma frase, a meio de um segundo.

Estamos dentro de um sono dentro de um avião dentro do tempo, a passear pelas nuvens. 
Descalços e descontinuados.

De súbito, uma turbulência qualquer no corpo. Uma ansiedade minúscula alinhada à esquerda.

Abrimos os olhos e vemo-la: a cidade do Porto. As casas, as estradas, as pontes.

Ao longe, a cidade invicta é bonita.
A beleza tranquila da distância.

Pousamos devagar no mundo. Como pequenos deuses. Primeiro os pés e depois a cabeça.
Só então o tempo recomeça.
O tempo e o mundo.

2016 ao virar da esquina. 

Mais um ano, mais uma viagem. 
O tempo ao longe.

sábado, 19 de dezembro de 2015

A Guerra das Estrelas e das Mulheres

Não tarda vou conhecer o novo episódio da Guerra das Estrelas. 
A Força está comigo e a nostalgia também. 
Nos últimos dias andei a rever os episódios do século passado, com o Luke Skywalker e o Harrison Ford.
A abrir, duas naves vagueando pelo Espaço. Logo a seguir, a corajosa princesa Leia, impecavelmente vestida de branco. Traz uma arma na mão e duas empolgantes tranças à volta das orelhas. 
Quem não se lembra disso? 


É a princesa guerreira, capaz de sacrificar o seu próprio planeta por valores mais altos. 
Atenção, universo: a princesa Leia é do caneco. 

Infelizmente para a guerreira e para o império, a história não é bem sobre ela. Já se sabe que as mulheres e os seus pipis são um grande desequilíbrio para a Força. 
O papel de Leia é o de uma princesa sensível, que inspira os rebeldes e não teme o inimigo. 
A mensagem mais famosa do universo é a de uma mulher em desespero: Help me, Obi Wan Kenobi, you’re my only hope.

A Guerra das Estrelas, of course, é uma guerra de pilas e sabres luminosos. Nela participam Luke Skywalker e Obi-Wan Kenobi, o Capitão Solo e o seu companheiro Chewbacca, o mestre Yoda e o medonho Darth Vader.
Não haja dúvida: há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, o universo inteiro já era masculino.

Num momento de apuros, quando Leia começa a dar ordens aos moços, o Capitão Solo sente o seu orgulho ferido. Da boca de Harrison Ford sai um comentário do estilo: Se pudermos evitar mais conselhos femininos, talvez dê para sairmos daqui.
A minha alma irritou-se e virou-se para o lado negro. 
A certa altura, um homem dirige-se a Leia de sorrisinho matreiro. Diz algo do tipo: Well, what do we have here? Leia encolhe-se, porque é uma princesa vulnerável. 
Por esta altura, a minha alma começou a arfar como o Darth Vader.

O cúmulo desta representação dá-se no episódio VI, quando a princesa guerreira surge escravizada e acorrentada aos pés de Jabba The Hutt, ostentando o corpo por baixo de um espectacular biquini metalizado. Nada mais indigno para uma princesa guerreira. 

A bem dizer, os maus da fita passam a vida a capturar a Princesa, que felizmente pode sempre contar com Skywalker e amigos. 
À única mulher protagonista cabe definir estratégias, encorajar os rebeldes e desafiar o poder instalado. Mas não se engane o espectador: a Princesa Leia não anda por aí a manobrar naves e sabres.

Num momento de fraqueza, a Força abandona-a completamente. Han diz-lhe: Estás a tremer e, logo a seguir, beija-a. Quando ela diz: I love you, ele responde: I know. Grande homem. Pobre mulher. A dominar o romance do princípio ao fim está Harrison Ford e a sua luminosa pila.

A Força está com a princesa Leia, mas não assim com tanta força.

Talvez o novo episódio não se situe numa galáxia tão distante no que toca às mulheres. 
É esta a minha exigência. 
My only hope.

Apesar de tudo isto, adoro o penteado da princesa Leia. 

Na Bélgica dava-me um jeitão. 
Sempre abafava os sons furiosos do trânsito. 
E combatia com eficácia este Inverno.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Facebook, o livro dos rostos (II)

Sei lá. Era domingo. Estava frio. Fiz bolachas de chocolate no forno. E depois abri a janela para o mundo e também uma página no Facebook, o livro dos rostos.
Foto de perfil: nhec.
Pode ser a karateca. Não é bem o meu rosto, eu sei, mas também é um rosto meu.
As bolachas de chocolate ficaram assim assim. Não tenho grande jeito.
Mil e uma perguntas. Respondi Não a muitas delas.
Quer que o Facebook aceda aos seus contactos? Não.
Quer que os amigos dos amigos não-sei-quê na sua página? Não.
Quer que os seus amigos não-sei-quê das tags? Não.
Logo a seguir deu-me a timidez. Não disse nada.
Fiquei ali especada a olhar e a comer bolachas. Têm fermento a mais.
Há muito tempo escrevi: Abomino o livro dos rostos.
Mas agora passou-me a birra, acho. As pessoas mudam.
Mudam, não mudam?
Talvez.
Quarenta pedidos de amizade. Aceito? Não aceito?
Os rostos dos outros.
Assustei-me. Lembrei-me. Emocionei-me.
Olha-me esta moça! Casou-se no mês passado. Que bonita.
Onde ficou essa amizade? Não me lembro.
Uma vez acampámos juntas. Não sabíamos montar a tenda, estava a chover. Tínhamos 13 anos.
Lama por todo o lado. Deram-me uma alcunha qualquer porque eu era sempre a última a chegar. Talvez Turbo ou Racing. Não sei.
Fui a última a chegar ao livro dos rostos.
E, sinceramente, não me ocorre dizer nada.


Voilà, c'est ça !


Cheguei.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Abóbora

Gosto da palavra e do fruto.
Em todas as línguas é doce. E abobadada.
Pumpkin. Potiron. Abóbora.
Gosto da forma e do conteúdo: a casca dura e desajeitada, a polpa cor de laranja.
É um fruto profundo. Talvez oculto.
Está cheio de sementes e sussurros.
Dentro de uma abóbora está a carroça da cinderela e também a bruxa má. Com a sua vassoura, a sua loucura.
Cuidado com as abóboras, menina.
Têm uma magia bonita e uma magia feia.
Apesar disso, ou por causa disso, gosto à farta de pevides.
E de tarte de abóbora. Compota de abóbora.
Óleo de sementes de abóbora. Hmmm.
É um oleo escuro e denso. Como o meu sangue.
Qualquer coisa acontece quando como este fruto. Uma esperança qualquer por dentro.
Eu como pevides e penso: Talvez tudo mude. Oxalá o mundo avance. Oxalá fique quieto.
Temos coisas em comum, eu e a abóbora.
Também eu sou cinderela e bruxa. Desajeitada e oculta.
Além disso, tenho cabeça de abóbora. Sou bastante abobada.


E adoro laurear a pevide.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Amor ortográfico: Times New Roman

É impossível não sentir abstruso enfado quando se lê um texto em Times New Roman. Tudo perde o encanto e o sentido quando escrito neste tipo de letra. Até os textos do Valério Romão ficariam desengraçados se andassem por aí nessa figura.
Ouçam bem: a fonte Times New Roman há de ser responsável por muitos males do mundo.
É que as palavras, quando se metem com esse tipo, parecem umas solteironas de cabelo atado. Sentam-se muito direitas à mesa, cheias de tiques e traços, e nunca falam de boca cheia, nunca dão um arroto ou um pum. São palavras chatas. Muito bem sentadas e alinhadas. Raramente pensam. Raramente pecam. São umas tristes.
Nenhum leitor as quer assim. Nenhum leitor lhes vai dirigir os olhos ou a alma. As palavras vestidas de Times New Roman morrem virgens.
E este poderá ser um grande mal do mundo: o asco do ser humano por este tipo rígido. 
As letras, quando se vestem de Times New Roman, não sentem paixão pela vida e sugam a motivação dos leitores mais vulneráveis. 
A narradora deste texto, por exemplo, fica logo murcha e incapaz.

Antes o Comic Sans que, apesar de velho e desajeitado, é só um tipo sem ambição nem grande noção das coisas. Coitado.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Estado de alerta


Nove da manhã em Bruxelas. Ameaça séria e iminente. Tenho os olhos pesados. A Elena Ferrante tira-me o sono.

E agora? Saio de casa ou não saio de casa?

Troca de mensagens com amigos e colegas. Uns vão trabalhar. Outros ficam em casa. Outros trabalham a partir de casa.

A formação de formadores foi cancelada. Ainda bem. Não me apetecia nada.

O meu calendário diz-me que hoje é o meu dia de tirar sangue. Like.

Lá fora estão dois graus centígrados. Sirenes da polícia ao longe e ao perto.

Comi pão duro. A culpa é minha. Ficou fora do saco a noite inteira.

Atrás das casas, um pequeno sol à espreita.

É um bom dia para tirar sangue. Escolho cores neutras para não dar nas vistas. Estou disfarçada de pessoa normal.

Saio de casa. Pouca gente na rua.

Algumas pessoas nos cafés. Duas moças fumam à porta de um escritório. Riem-se. Um homem passa com um carrinho de bebé. Afinal são dois bebés. Estão contentes. Batem palminhas.

Sinto frio nas mãos. Esqueci-me das luvas.

E agora? Sigo caminho ou volto para trás?

Um homem entra num carro e topa-me. Eu topo-o. Um rapaz de capuz passa por mim, eu passo por ele. Aqueço as mãos uma na outra, sigo caminho.

No café de esquina, algumas pessoas estão coladas aos vidros. A ver as vistas. Um senhor de idade lava o chão de um prédio. Pára de lavar o chão para me ver passar. Um camião de portas escancaradas. Caixotes de comida, parece.

A escola secundária está fechada. Melhor assim. No bar esquisito da rue du Viaduc os mesmos homens com ar de marinheiros tristes.

Sinal vermelho para os peões. Eu espero. Uma rapariga do lado de lá também espera. Lançamos olhares feios uma à outra. As pessoas rodam a cabeça para acompanhar certos sons e movimentos. Por exemplo, um elétrico que passa. Um carro da polícia. Um cão a ladrar. Uma bicicleta.

Os guindastes estão paradotes. Hoje não há obras.

Um homem vem na minha direção a cambalear. Parece-me indiano. Aproxima-se de mim. Está bêbedo. Pergunta-me baixinho se tenho lume. A pergunta dá-me vontade de rir.

As árvores estão bonitas. Folhas amarelas.

Venho a ouvir Sunny Road e estou precisamente numa sunny road. Completamente vazia. A rua.
Eu também estou vazia.
O sol pousa devagar nas janelas. Gelo e sol nas janelas. Tiro uma fotografia ao cenário.

Em frente ao Parlamento Europeu estão quatro militares armados ao pingarelho. Muito quietos e concentrados. Um deles ergue-me as sobrancelhas. Parece-me satisfeito com a vida.

Não há nada como ter uma metralhadora na mão.

O sol fica por cá o dia todo.
É um sol esperançado. Europeu.
Antiterrorista.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O dicionário do menino Andersen

Vejam só o que aí vem:

O lançamento deste belíssimo livro é já na sexta, 20 de novembro, às 21h.
Mais informações e cenas fixes aquiali e acolá.

Quem não for, leva com uma definição na cabeça.
Eu, por exemplo, levei com esta banheira.
E gostei.



terça-feira, 17 de novembro de 2015

A quingentésima

Olha, esta é a mensagem número 500 deste blogue. Vi agora.
Feliz maneira de regressar ao Belgavista. Com a quingentésima mensagem.
Estamos no avião a descer para Bruxelas.
Quando atravessamos as nuvens, o avião estremece e o coração também. É sempre assim.
Chegar a Bruxelas é um tremor no ar.
Felizmente o avião pousa devagarinho. Nada mau.
A noite chove na rua e também na cabeça.
Seguro-me ao corrimão para não escorregar.
As minhas pernas descem e a minha saia sobe. O vento é malandreco.
Chego a casa. Um embrulho aprimorado na caixa do correio. O que é isto?
Ah, é um livro bonito.
Que livro bonito?
O dicionário do menino Andersen.
Uma capa rugosa. Um desenho depurado. De passar os dedos por cima e também a língua.
Pimbas.
Uma lambidela salivada no Gonçalo M Tavares e na Madalena Matoso.
Uma definição do menino Andersen:
MOSQUITO: animal que está mal sintonizado.
Nada mais certeiro para acabar com a noite.
Acordo com as sirenes e tomo banho. Lavo-me por cima e por baixo. Barro manteiga nas torradas, bebo café com leite, leio uma fatia da revista LER. Tudo ao som das sirenes. Ti-nó-ni.
Saio de casa.
O sol lá em cima não chega cá abaixo: lá no alto é de dia; cá em baixo é de noite.
A meio da rua as sirenes calam-se. Talvez por causa dos meus auscultadores. Não sei.
Uma perguntinha com a ajuda do público. O que explode mais rápido: um autocarro ou uma carruagem do metro? Escolho o autocarro.
Ficamos parados no trânsito. Espero de pé como os outros.
Militares na rotunda das instituições europeias. Com uma arma ao colo e uma mochila às costas.
Digo Bonjour quando entro no edifício. Ah, que espanto. Ainda não tinha falado franciú.
Há sirenes em Bruxelas.
Chuva. Trânsito.
E terroristas.


Não tinha saudades disto.
Mas até tinha saudades disto.
Estou mal sintonizada.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Regresso ao futuro

Há 30 anos, o Doc levou-nos num DeLorean desportivo para o dia 21 de outubro de 2015. O Regresso ao Futuro, a trilogia mais amada do cinema, levou-nos para trás e para a frente na companhia de Michael J Fox.
No futuro distante, no dia 21 de outubro de 2015, os skates não têm rodas, os carros voam e as pizzas aumentam de tamanho no microondas.
Where we're going, we don't need roads, diz-nos o Doc.
Mas afinal o futuro é mais lento do que a imaginação. Na verdade, atrasou-se um bom bocado. É um futuro vintage.
Trinta anos depois, o Marthy Mcfly continua a ser um sonho. E, de certa forma, os anos 80 continuam a guiar o imaginário futurista.

Agora sim, regressámos ao futuro, que é o presente. Vou ver a trilogia toda outra vez. Para regressar ao passado.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Supergigante no Catálogo White Ravens 2015

Todos os anos a International Youth Library lança o Catálogo White Ravens, uma seleção de 200 livros infanto-juvenis de todo o mundo.
Em 2015, o Catálogo White Ravens inclui 200 obras em 55 línguas, provenientes de 36 países. Podem vê-lo aqui.

É com grande espanto e comoção que vejo o irrequieto Supergigante a representar Portugal ao lado de António Jorge GonçalvesNatalia Chernysheva.
Na sua apreciação sobre o Supergigante, o júri destaca a estrutura do texto e as ilustrações dinâmicas de Bernardo P. Carvalho.
O Catálogo White Ravens (também conhecido por corvos brancos!) será lançado na Feira do Livro de Frankfurt e marcará forte presença na Feira do Livro Infanto-juvenil de Bolonha.

AAARGH!
Estou a crocitar de júbilo.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Biblioteca Fnac Kids - 100 livros que crescem contigo

Atenção, pequenos leitores e grandes educadores:
A Fnac acaba de publicar a nova Biblioteca Fnac Kids - 100 livros que crescem contigo.


Esta é a segunda seleção de livros feita pela Fnac para os leitores mais novos (dos 0 aos +10).
As duas Bibliotecas Fnac Kids estão disponíveis nas lojas Fnac e também aqui e aqui. Vale a pena conhecê-las!

Resta-me informar que tanto o Supergigante como a Karate kid fazem parte desta seleção.
Pontapé no ar! Yaaaa!

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A claridade fugidia

Acabo de ser atingida por um raio místico. 
Estou no comboio, a agitar o corpo e a alma numa viagem para o Porto, a ler Uma Viagem à Índia.
De súbito, num momento de qualidade ascética, um raio de luz aterrou escancarado no livro. Era o único pedaço de sol na carruagem. 
Uma faísca certeira a iluminar uma estrofe do demoníaco Gonçalo M Tavares. Como se aquela página fosse a entidade eleita. 
Os meus olhos, depois da escuridão, habituaram-se à luz. Leram a estrofe 97 do Canto IV:

"E um homem não conhece a sua verdadeira ambição
até passar por uma tragédia forte, uma tragédia individual. Só se sabe olhar, depois
de se aprender. E olha-se melhor no primeiro momento
a seguir ao sono. Ter os olhos fechados é afinar a pontaria,
é preparar a íris negra para a rápida
claridade que nos foge."

Interrompi a leitura e escrevi isto. 
Para ultrapassar o assombro. E agarrar a claridade fugidia.


quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Pintar os dedos

Eu não pinto as unhas.
Pinto os dedos. Com esferográficas e canetas de feltro.
Gosto das minhas mãos assim. Secas, gretadas e às pintinhas.
Eu penso que as canetas fazem de propósito. Largam tinta, escorregam, explodem nas mãos. São desajeitadas com intenção.
As minhas canetas pintam a manta. Pintam a macaca. Fazem figuras. Borram a pintura.
E nunca pintam a cara de negro. Estão-se nas tintas.
Por causa disso, as minhas mãos têm grande pinta.
São muito mais bonitas assim.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Papel de alumínio

Uma rapariga senta-se no parque, em frente ao lago. Debruça-se sobre um embrulho em papel de alumínio. Procura pacientemente a ponta do papel alumínio, o princípio ou o final da folha.
Descobre-a.
Eis o embrulho desembrulhado.
É só uma sandes murcha. Pão escuro e com sementes, talvez seco, talvez insosso. Nhec. Avistamos uma folha de alface, uma fatia de tomate e talvez queijo.
A rapariga come a sandes sem pressa. Distrai a mão esquerda com a folha de papel de alumínio, que vai amachucando com os dedos. No final aperta o papel de alumínio com as duas mãos.
A folha de alumínio é agora uma esfera perfeita. A rapariga aprecia a sua rotação, gira a esfera na palma da mão.
Um pequeno mundo na palma da mão.
O que fazer com um pequeno mundo?
Destruí-lo.
A mão encontra novamente a ponta do papel, o princípio ou o final da folha. A esfera rebola desazendo-se. A rapariga estica a folha de papel de alumínio, olha para ela, para o reflexo torcido do seu rosto na folha de papel. Espelho meu, espelho meu.
A rapariga embrulha agora a mão esquerda na folha de papel de alumínio como se embrulhasse uma sandes ou um presente. Dobra uma ponta e depois outra.
Contempla a mão embrulhada e estica os dedos até furar o papel. A mão liberta-se.
A rapariga interessa-se pela folha de alumínio, que tem uma face cintilante e outra face opaca.
É maleável e resistente. Além disso, é um bom isolante térmico.
A rapariga pensa no seu coração embrulhado numa folha de papel de alumínio. A isolar o calor. O seu coração como um pequeno embrulho.
A rapariga levanta-se. Antes mesmo de abandonar o parque, atira a folha de alumínio para o caixote do lixo.
A rapariga pensa no seu pequeno mundo. No seu reflexo torcido.
Também a rapariga tinha uma face cintilante e uma face opaca.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A livraria PTYX é um livro aberto

Eu desço a rue Lesbroussart como se estivesse a descer a rua do Alecrim: a baloiçar os braços e sem travões nas pernas. Cá vai disto.
A meio da rua, mais para baixo do que para cima, vejo a livraria PTYX, uma casa branca com escritores pendurados nas janelas.
Eu leio a fachada da livraria como quem lê um livro.
É que o rosto da PTYX reproduz a página de um dicionário. De alto a baixo, letras pretas sobre a fachada branca.
Para meu regozijo, ao lado da montra, na porta imaculada, está a Virginia Woolf. Eu passo por ela e tiro-lhe o chapéu.
A livraria PTYX é um livro aberto. Eu entro e leio os títulos, ouço o murmúrio nas prateleiras. Um murmúrio contínuo, como um texto que passa. Abro os pequenos livros como se abrisse ostras ou pequenos tesouros. Com dedicada cautela e expectativa.
Regra geral, fico no cantinho das novelas gráficas. Descubro grandes pérolas ali. Uh là là!
A livraria PTYX é a minha livraria de eleição.
No entanto, a minha eleição não lhe serve de muito. Não sou grande cliente. Na verdade, sou uma porcaria de cliente. Por norma, só lá vou aos sábados e nem sempre é possível passar na PTYX aos sábados. Há outras coisas para fazer.
Que outras coisas, pá?
Sei lá. Outras coisas.
Quando desço a rua Lesbroussart, são mais as vezes em que passo na livraria sem entrar do que as vezes em que lá entro. Independemente disso, tiro sempre o chapéu à Virginia Woolf.
Como é que é possível não ter tempo para as livrarias?
Receio que a maior parte da clientela da PTYX seja como eu: uma clientela de sábado-à-tarde-quando-dá. Se assim for, a PTYX tem os dias contados. Não é possível manter uma livraria com clientes sem travões.
Infelizmente para mim e para outros, a PTYX não abre aos domingos. São os próprios livreiros que explicam: on n’est pas feignant, ON LIT! Aos domingos, estão a ler, claro. Eu também leio aos domingos. Compreendo e aprovo.
Sempre que passo em frente à PTYX a baloiçar os braços e sem travões nas pernas, sinto remorsos.
Se a PTYX fechar, a culpa é minha.
Os leitores têm de ir às livrarias. Têm de folhear os livros nas livrarias. Têm de comprar livros nas livrarias.
Por uma questão de respeito e gratidão.
Não basta tirar o chapéu.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A narradora ambulante

Lá vai a narradora deste texto. Sai de casa de mãos soltas.
Traz nos pés uma certeza qualquer sobre o mundo. Auscultadores enfiados nos ouvidos, uma introspeção enfiada nos olhos.
A narradora quase sorri por causa da canção alegre que traz nos ouvidos.
Só ela ouve aquela canção. Só ela vê aquele mundo.
O princípio do sol sobre as casas, as nuvens pequeninas a passear no céu.
A narradora estica a espinha dorsal e o dia começa.
Dobra a primeira esquina. Passa pelo quiosque de jornais onde nunca entrou, diz olá ao cão que leva o dono pela trela. Passa pela bruxa má que varre o chão, pelo ciclope que dorme sobre os sacos do lixo, pelo gato felpudo que está sempre sentado no parapeito.
Chega ao cruzamento, sinal vermelho para os peões. A narradora olha para o mural de banda desenhada, que representa precisamente um cruzamento.
Ficção e realidade cruzam-se. A narradora atravessa para o lado de lá.
Uma casa muito comprida debruça-se sobre ela. O bicho-papão cumprimenta-a da janela.
A narradora olha para os caminhos de ferro lá em baixo, sente-lhes o cheiro manhoso. Ao fundo, a Branca de Neve rega as plantas. A narradora acena-lhe ao longe.
Enquanto caminha, pensa nos seus próprios pés. Nos seus tornozelos. Nas unhas minúsculas na ponta dos dedos mindinhos. Enquanto caminha, a narradora pensa no ato de caminhar. Gosta de deambulações.
É uma narradora ambulante. E sente um certo domínio sobre a vida.
Sobre a física.
Sobre os pés.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A minha mãe penteia os meus cabelos

A minha mãe penteia os meus cabelos e também as árvores e os rios. 
Os caminhos ficam muito direitos. As casas abrem as janelas.
A minha mãe estica o meu cabelo e também as nuvens e as ondas.
As aves voam mais alto. As flores falam mais baixo.
Tudo é maior e mais claro, quando a minha mãe penteia os meus cabelos.
O céu boceja. Prolonga os braços.
A minha mãe desembaraça as horas e também os meus cabelos.
O sol olha para o mundo com um certo espanto no rosto.
E a tarde pousa no chão como um milagre.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

À porta fechada

Chegas a casa, fechas a porta, rodas o trinco.
Olhas para trás para te certificares de que rodaste o trinco.
Sim, rodaste.
Tu suspiras. Há um certo alívio no isolamento. Uma liberdade na clausura.
Como assim?
Tu olhas para a tua mão direita, que rodou o trinco, e não gostas da tua mão direita, porque rodou o trinco. É um movimento novo.
Estás trancada.
Como se fosses um tesouro. Uma pérola. Uma relíquia. Uma princesa isolada no cimo da torre.
Tu pensas: É mais seguro assim. É tão mais seguro assim.
Estás na tua casa, na tua torre. À porta fechada.
E ninguém entrará aqui. Absolutamente ninguém.
Só a porteira poderia entrar na tua casa.
Não. Nem sequer a porteira. (Está de férias.)
Tu suspiras um sufoco bonito.
Só o teu marido entrará. Há de voltar não tarda.
E de repente lembras-te daquele teu amigo, que também tem a chave da tua casa.
O teu amigo podia entrar agora mesmo.
Podia, não podia?
Sim, podia.
Por que deste a chave da tua casa?
Um ladrão também poderia entrar na tua casa. Primeiro espreitaria pela fechadura e depois entraria de rompante ou então devagarinho, sem fazer barulho.
Tu escutas o barulho da casa. Tu não fazes barulho para escutares o barulho da casa.
É como se jogasses às escondidas com o mundo. É como se jogasses às escondidas contigo própria.
E antes não eras assim, pois não?
Não.
Antes perdias as chaves aqui e ali. O senhorio ralhava contigo. Mudava-se o trinco. Mudava-se o senhorio. Perdias as chaves outra vez.
Nem sequer trancavas a porta por dentro ou por fora. Trazias para casa as chaves de outras pessoas. Chaves de hotéis longínquos.
Também te esquecias das chaves em casa. Ficavas do lado de fora. Pedias à senhora da livraria que ligasse a um serralheiro. A senhora da livraria oferecia-te guarida, tu recusavas. Ligavas a uma amiga. Dormias num sofá. Em lençóis mais frescos do que os teus.
Tu estás fechada dentro da cabeça e pensas nessa pessoa que não trancava a porta de casa.
Hoje acordas de manhã e rodas o trinco. Abres a porta, abres os olhos e dás com as tuas chaves do lado de fora. As tuas chaves de casa penduradas na porta, a convidar qualquer um a entrar. Esqueceste-te delas ali, na fechadura.
E é como se o mundo inteiro jogasse às escondidas contigo. É como se tu própria jogasses às escondidas contigo.
Por um lado, fechas-te por dentro. Por outro, atiras a chave à rua.
De um lado da porta, és uma coisa. Do outro lado, és outra coisa.
Tu espreitas pela fechadura e vês o teu reflexo, a tua sombra.
Uma parte de ti está fechada em copas. E a outra está aberta ao mundo.

sábado, 8 de agosto de 2015

Trinta e três

Eu digo: Trinta e três. E a língua destrava e tropeça, dou uma trinca no três.
Trinta e três é um trava-línguas atarantado.
Eu penso: Vai ser um ano tramado. Ou talvez não.
Aos trinta e três, Jesus morreu e regressou à vida. (Cruzes, canhoto!)
Aos trinta e três, Jesus mudou o mundo e também o tempo: antes de Cristo, depois de Cristo.
Aos trinta e três, tudo é possível.
O inverso de trinta e três é trinta e três. É o mesmo número para a frente e para trás.
E eu gosto à farta de capicuas.
O meu nome também é uma capicua.
Eu própria sou uma capicua. Sou o mesmo número para a frente e para trás.
Isto quer dizer que eu e o número trinta e três temos coisas em comum.
Eu digo: Trinta e três.
E já não trinco o número. Já não tropeço no tempo.
Antes de mim, depois de mim.

Voilà!

Ressuscitei.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Supergigante no Brasil

O Supergigante chegou ao Brasil.
É verdade.

Foi uma história incrível.
O Edgar ia muito bem a correr numa estrada sempre em frente, que foi dar a outra estrada, que foi dar ao fim de qualquer coisa, e esse fim era o vento e as rochas, e o Edgar correu pelas rochas, contra o vento, contra o chão, contra tudo, entrou pelo mar adentro e continuou a correr, até que, no final das forças, no final do vento, viu um pedaço de areia ao longe, um pedaço de areia a brilhar como uma estrela, como um alarme, como uma saída de emergência, e então ele soube que aquilo não era o fim, mas sim o princípio.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Perder a cabeça

Por vezes, perco a paciência. Perco o sangue-frio. Perco a cabeça.
Logo a seguir perco o comboio.
Também perco objetos.
Alguns objetos existem para se perderem.
Meias, luvas, moedas. Óculos, sapatos. Chapéus, guarda-chuvas. Anéis, brincos, colares.
São objetos perdidos.
Por vezes, reaparecem. Mudam de lugar ou de dono.
Na maior parte das vezes, desaparecem para sempre. Livros, telemóveis, cartões. Cadernos, carteiras, bilhetes.
Eu não perco tempo com as coisas perdidas.
Encolho os ombros e sigo caminho. Digo-lhes adeus ao longe. Um aceno, um beijinho, um abraço.
Os gestos também se perdem.
Eu não tenho apego às coisas perdidas.
Não perco o meu latim. Não perco as estribeiras.
Dou pela falta de um brinco e não sinto pena nem arrependimento.
Sinto uma enorme indiferença. Uma indiferença a perder de vista.
Se calhar ganhei calo com tanta perda, não sei.
A verdade é que só perde quem tem. E eu estou-me nas tintas para os objetos.
Deito tudo a perder.
Uma vez perdi a consciência.
Outra vez perdi a virgindade e nunca mais a encontrei.
Por vezes, perco a cabeça. Perco terreno. Perco a razão. Perco a noção das coisas.
Perco o equilíbrio.
Em certos dias, perco-me de amores. Perco-me num livro.
Sou uma grande perdedora. Mas nem por isso tenho bom perder.
Nunca gostei de perder no Monopólio.
Ainda hoje odeio perder no Sudoku.
Quando jogava vólei, perdia a voz de tanto gritar.
Não gosto de perder o pé. Não gosto de perder a vez.
Infelizmente, já perdi pessoas. É terrível perder pessoas.
Eu tenho mau perder a perder pessoas.
Nos dias bons, perco o medo. Nos dias maus, perco o tino.
Raramente perco o sono. Raramente perco peso.
Quase sempre, perco a vergonha.
Nem sempre é mau perder a vergonha. Por vezes, é bom. É bem melhor.
Sempre se ganha alguma coisa quando se perde.
Talvez juízo.
Talvez experiência.
Sei lá.
Pode ser que sim.
Por vezes, perco o norte. Perco o fio à meada. Perco-me em divagações.
Mas não perco pitada.
Não perco pela demora.
E nunca perco a esperança.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Supergigante no Plano Nacional de Leitura

Todos os anos, o Plano Nacional de Leitura atualiza as listas de obras recomendadas para orientar os educadores e professores na escolha dos livros mais adequados aos seus alunos.
A partir do próximo ano letivo, o Supergigante passa a fazer parte dos livros recomendados para leitura autónoma no 3.º ciclo.
O Edgar desatou a correr!
É um miúdo um bocado irrequieto.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Planeta Tangerina em exposição

Nos próximos tempos, se passarem por Coimbra, não deixem de ver a exposição do Planeta Tangerina. Eu ainda não fui, mas espero ir!
Em baixo, o convite.


O Planeta Tangerina pode ser visitado em forma de exposição no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. A exposição, que estará patente até ao próximo dia 23 de outubro, desvenda alguns aspetos dos bastidores do trabalho de criar livros, desde os esboços e experiências ao nível das ilustração, aos originais e maquetas que dariam origem aos livros. Aqui se mostram também as hipóteses que estiveram em cima da mesa — as capas, os letterings, os formato e até os projetos que não avançaram — assim como as edições que viajaram para outros países, com outras capas, outros alfabetos,
outros acabamentos.


A exposição é uma iniciativa do Colégio das Artes, uma unidade da Universidade de Coimbra que opera no âmbito da Arte Contemporânea numa perspetiva transversal aos vários domínios do saber artístico.

 

A exposição pode ser visitada de 2.ª a 6.ª feira entre as 14 e as 18 horas.
Colégio das Artes da Universidade de Coimbra
Largo D. Dinis · Coimbra

terça-feira, 7 de julho de 2015

Referendo, Peripécia e Catarse

Os gregos disseram Não.
Não se sabe bem a que disseram Não.
À Europa?
Não.
À austeridade?
Também não.
No entanto, o Não transmite uma mensagem que é, de certa forma, positiva. É, não é?
Talvez.
O Não é um símbolo.
Há aqui uma certa dramatização da negação, uma representação, um teatro da escolha.
A escolha de quê?
Não sabemos.
Apesar disso, acho bem que os gregos tenham dito Não. É preciso não ter medo do desconhecido.
Se me dessem a escolher, também diria Não. A quê?
A isto. A esta Europa.
À austeridade.
Infelizmente, os dirigentes gregos vieram a Bruxelas sem um plano.
Porquê?
Ninguém sabe.
Só eles saberão.
Li há pouco-poucochinho que o Tsipras trouxe uns apontamentos escritos num bloco de hotel.
Quem é afinal o protagonista deste impasse?
A propósito do medo e do teatro, fui revisitar a Poética de Aristóteles, o texto milenar que veio definir os géneros literários.
Diz-nos Aristóteles que a tragédia grega - género superior da arte poética - é uma imitação das ações e da vida, e não uma imitação dos homens. Ou seja, vive dos acontecimentos; não das personagens. Ainda assim, as personagens têm de ser nobres. Só é possível sentirmos compaixão por pessoas boas, de conduta exemplar.
Se a atualidade na Grécia e na Europa fosse um texto poético, o referendo grego - ou a imitação do referendo - seria o acontecimento; os gregos - dirigentes e cidadãos - seriam as personagens. A bem desta tragédia, partiremos do princípio de que tanto os gregos como os troianos são personagens nobres, de conduta exemplar.
Os demais europeus são, pois, espectadores entusiasmados e também figurantes. Alguns entre eles são, claro está, protagonistas, igualmente nobres e exemplares.
Brevemente ficaremos a saber se esta peça sofre uma reviravolta.
É que a tragédia grega só se concretiza com uma peripécia capaz de transformar os acontecimentos no seu oposto.
No caso, talvez o Não dos gregos se tranforme num Sim. A quê?
Não sabemos.
Talvez à Europa.
Talvez à austeridade.
A verdadeira tragédia ocorre com o reconhecimento da peripécia ou reviravolta, ou seja, quando a personagem passa da ignorância para o conhecimento.
Neste momento, somos todos ignorantes.
No final, quando percebermos o resultado de tudo isto, se estivermos perante uma verdadeira tragédia grega - género superior da arte poética - os gregos cairão em desgraça pelas suas próprias mãos e os europeus darão provas de compaixão e temor. Só este sofrimento, esta empatia, este medo, nos levará à catarse. Ou seja, à purificação da alma através do delírio. Ao domínio das paixões. À clarificação do intelecto.
Desta tragédia talvez a Europa saia mais forte. Mais pura. Mais esclarecida.
Ou isso, ou ficará tudo na mesma. Isto é, na linha do declínio, com tendência a piorar.
É possível. É até provável.
Nesse caso, todo este texto seria um péssimo exemplo de arte dramática. Sem peripécia, não há catarse.
Seja como for, parece-me que a Europa precisa de mais poesia. De mais lirismo.
E de menos técnica.
Eu digo Sim aos gregos.
À peripécia.
E à catarse.

sábado, 4 de julho de 2015

Belgavista aos 8 anos

O Belgavista é um mole.
Não tem esqueleto por fora nem por dentro.
Quando se assusta, larga tinta.
Tem uma cabeça e oito braços ou oito pernas, não dá para perceber.
Vive no fundo do mar. Sozinho. Dentro de uma gruta.
Por tudo isto, este blogue parece um polvo, mas não é um polvo. Também não é um molusco.
É um monstro marinho.

Faz oito anos hoje.
Oito anos, oito braços, oito pernas.

O monstro Belgavista agradece a todos os leitores que passam pela sua gruta.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

As casas abandonadas

A narradora deste texto caminha e passa por casas abandonadas.
Uma. Duas. Três. Quatro.
Casas que não são casas.
São cascas. São crostas.
Vestígios.
Ninguém mora ali.
Nem sequer um objeto.
Nem sequer um gato.
Nem sequer uma planta.
Têm janelas ocas. Paredes esgaravatadas.
São casas sem conteúdo.
Vazias. Desabitadas. Sozinhas.
Por vezes, vêm os guindastes.
Os guindastes e os homens de capacete.
Arrancam os telhados. Os vidros. As varandas.
De repente, uma lacuna.
Um buraco entre as casas.
Um pedaço de céu.
A narradora deste texto interrompe a marcha e o pensamento.
Observa a demolição das casas.
É um intervalo na sucessão dos dias. Um hiato. Um lapso.
Uma ferida aberta.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Shake to shuffle

O meu iPod pode muita coisa.
É pequenino, fininho e inofensivo, mas dá-me muita música. Além disso, tem o poder mágico de transformar o mundo.
Quando quero mudar de banda sonora, agito o iPod no ar e ele muda de ideias. Põe outra música qualquer. E o mundo altera-se.
Eu abano e ele abana, o mundo transforma-se.
Alguém chamou a isto Shake to Shuffle.

Era bom que o mundo fosse um pouco mais parecido com o meu iPod.
Uma pessoa abanava-o e ele mudava de paradigma.
Seria um mundo completamente diferente. Todas as vezes diferente.
Admiravelmente novo e renovado. Modificado.
Com outro ritmo, outro tom, outra música.
Uma pessoa shake e ele shuffle.

Seria uma proeza ao estilo da Dorothy, que batia com os pés no chão e ia parar à Terra de Oz.

Apetecia-me passear na Terra de Oz com o Homem de Lata.
Em vez disso, vou sair para a terra bruxuleante de Bruxelas.
Mas vou bater com os pés no chão na mesma. Só para abanar um bocadinho.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Com a cabeça nas letras

Acontece-me com frequência.
Estou muito bem no sofá a ler um livro e a bebericar um chá, quando, às páginas tantas, uma página do livro abre a boca e eu caio lá para dentro.
Às vezes magoo-me na queda e fico confusa, não sei onde estou. Bato com a cabeça nas letras.
Eu grito, mas ninguém me ouve. Não há janelas nem portas dentro de uma página.

Ando de frase em frase durante horas e não encontro a saída, não entendo as palavras. São muito maiores do que eu.

Reparem: eu estou dentro da página. Não é possível ler por dentro.

Ando de um lado para o outro como uma barata tonta. Caminho pelas palavras de cima para baixo e de baixo para cima. Chego ao fim da página e volto para trás.
Tento rasgar o papel mas não consigo, não tenho força. Fico enclausurada entre as linhas.

E não há nada para fazer aqui além de ler e reler. Rastejo pelo chão da página e tento decifrar as letras. Leio e releio. Repetidamente. Insistentemente.
Primeiro em voz alta e depois com a ajuda das mãos e dos pés.
Da esquerda para a direita e da direita para a esquerda.

Infelizmente, não há palavra que me salve. A leitura não avança, não acontece.
As palavras ficam a repetir-se no tempo como máquinas avariadas.

A única solução é parar de ler.
Quando eu desisto, a página abre a boca e eu saio.

São páginas caprichosas.
Lidam mal com a rejeição.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Mads Mikkelsen

Nos últimos tempos dou de caras com o Mads Mikkelsen todos os dias. Está sentado à minha porta, vestido de preto e de perna cruzada.
Eu assusto-me quase sempre: dou um gritinho e levo a mão ao peito.
É que o Mads Mikkelsen provoca em mim um certo respeito e também acentuado fascínio. Seja como vilão do James Bond, seja como amante da rainha.
Saio de casa e olho para ele, ele olha para mim. Traz um sorriso matreiro pendurado nos lábios, como se soubesse tudo sobre os comuns mortais, eu incluída.
Eu sigo em frente e ele fica para trás, na sua poltrona profunda.
Há qualquer coisa intrigante e espicaçante no Mads Mikkelsen. Tem cara e nome de louco. E uma voz profunda, de assustar os corvos.
O que faz o Mads à minha porta?
Não-sei-quê de mobília escandinava. Estou-me nas tintas para a mobília escandinava.
De qualquer forma, agradeço o cartaz em tamanho real.
Nada me põe mais mad do que ver o Mads logo pela manhã.
Dá-se-me logo a espertina.

domingo, 7 de junho de 2015

Trovoada e trovador

A chuva cai. O pano cai. Tudo cai.
As pedras, as nuvens, os poemas.
Tenho um relâmpago dentro da cabeça. 
Raios e coriscos dentro da cabeça.

Sou um trovador a trovejar.
Sou uma descarga elétrica.

Um estrondo. 
Uma trova. 
Um trovão.

O tempo instável.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Manhãs difusas

As minhas manhãs são difusas e nebulosas. Vou até à cozinha e espreito o dia turvo através da janela. Está embaciada ou talvez suja, não sei.
Agarro numa faca que parece mesmo uma faca e corto duas fatias de uma coisa que parece um pão. Tomo um pequeno-almoço baço e confuso.
As torradas são foscas. A manteiga é ambígua.
O café é sombrio.

Nunca ponho os óculos de manhã. É uma questão de princípio, acho.
Sou uma pessoa desfocada e obscura.
Tenho vistas curtas.

E gosto.

sábado, 16 de maio de 2015

terça-feira, 12 de maio de 2015

Eu sou um gato

Acabei de ler o delicioso "I am a cat" do inconformado Natsume Soseki.
Publicado em fascículos ao longo de 1905 e 1906, este romance sobre a sociedade japonesa é narrado por um gato sem nome que muito se espanta com a natureza humana e sobrehumana.
O amor, a amizade, o casamento, a verdade, a mentira, o trabalho, a casa, as crianças, o dinheiro, a corrupção, as obrigações e a literatura - todos estes temas rebolam pelo livro e caem sempre de pé.
Como os gatos.

Será possível que não haja uma edição do portuguesa deste livro?

In the old days, a man was taught to forget himself. Today it is quite different: he is taught not to forget himself and he accordingly spends his days and nights in endless self-regard. Who can possibly know peace in such an eternally burning hell? The apparent realities of this awful world, even the beast lines of being, are all symptoms of that sickness for which the only cure lies in learning to forget the self.

terça-feira, 5 de maio de 2015

A karateca é "altamente recomendável"

No Brasil, a menina karateca foi considerada "altamente recomendável" pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) na categoria de "literatura em língua portuguesa".
Anualmente, a FNLIJ - secção brasileira do IBBY (International Board on Books for Young People) - seleciona os dez melhores livros publicados no Brasil em diversas categorias (criança, jovem, imaginam, poesia, etc.).
Esta seleção tem como principal objetivo orientar as Secretarias de Educação, escolas e bibliotecas na constituição dos seus acervos.

É uma notícia altamente!

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Prémio Autores 2015 SPA/RTP

Rebenta a bolha!

O Supergigante está nomeado para o Prémio Autores 2015 SPA/RTP na categoria Literatura - Melhor Livro de Literatura Infanto-Juvenil.
As ilustrações velozes do Bernardo P. Carvalho até incharam.

Os outros nomeados são:

Com o tempo (Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, Planeta Tangerina) e
Hoje sinto-me (Madalena Moniz, Orfeu Negro)

Conheceremos os vencedores das várias categorias (cinema, rádio, dança, música, teatro, televisão, artes visuais e literatura) no dia 25 de maio, na cerimónia de entrega dos prémios que será transmitida em direto pela RTP.

Hoje sinto-me... Supergigante... mas Com o tempo... isto passa, não se preocupem.

Parabéns a todos os nomeados!

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Amor ortográfico: Canetas mágicas

Ando com duas canetas extraordinárias na mala.
E para quê andar com as duas?
Não sei.
Se uma falhar, sempre tenho a outra.
É que as minhas canetas extraordinárias têm um poder especial: apagam a tinta sem magoar o papel e não deixam quaisquer vestígios. 
São canetas mágicas, claro! 
Corrigem o passado. Reescrevem a história.
Isto quer dizer que posso finalmente corrigir todos os meus cadernos e ninguém vai dar por ela, a não ser que os metam no frigorífico.
No frigorífico?!
É verdade.
Pelos vistos, as duas utilizam a mesma tecnologia: tinta sensível à temperatura. Aparentemente, o esforço de investigação e desenvolvimento foi grande e o resultado é sobrenatural. O calor gerado pela fricção da borracha torna a tinta invisível!
Nem de propósito, a minha primeira caneta mágica chama-se FriXion e é fabricada pela Pilot. A outra é a erasable pen da Muji. São ambas canetas de gel, ambas Made in Japan, ambas azúis e com bicos perfeitos de 0,5 mm.
O senhor da papelaria onde comprei a FriXion mostrou-me outra possibilidade para apagar a tinta. O método impressiona os mais sensíveis à temperatura e, além de eficaz, é bastante estiloso. Basta agarrar num isqueiro e passar a chama pelo papel. A tinta desaparece.
São canetas de feiticeiro com design japonês. Daí ter duas. Para reescrever duas vezes.
No entanto, se tiver de escolher entre uma e outra caneta mágica, não vou hesitar: prefiro a caneta da FriXion. Dá mais fricção à escrita e inclui um apoio confortável para a ponta dos dedos, o que possibilita uma utilização prolongada. 
Além disso, a borracha de tinta da FriXion é maior e, ao contrário da caneta da Muji, vem agarrada ao corpo da caneta e não à tampa. Isto permite-me mordiscar a tampa da caneta de forma contínua e sem remorsos, o que tem literalmente um impacto positivo no ato da escrita.
A caneta da FriXion tem ainda um corpo de plástico mais bonito do que a caneta da Muji. É menos cilíndrico, menos básico. 
Por último, a caneta FriXion pertence a uma edição exclusiva dos Estúdios Ghibli. Além de poderes especiais e de um apoio para os dedos, contém três Totoros.
É um toque de magia para lá da magia.
Irresistível!

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Rewind, stop, play

De vez em quando parece que engulo a cassete da nostalgia. Fico melancólica e carrancuda. Ando para a frente e para trás, para a frente e para trás.
Foi o que me aconteceu no outro dia, quando vi um leitor de cassetes: os botões volumosos e emperrados, a gaveta de plástico. Carreguei logo no Play e comecei a andar à roda.
Tenho saudades das minhas cassetes. De abrir as capas. De escrever nas etiquetas "R.E.M" ou "Mega mix". De colar canções com fita-cola.
De ficar a ver a música passar de um lado para o outro.
De carregar nos botões.
Rewind, stop, play.
A vida era quadrada e transparente como as cassetes.
O que enrolava de um lado, desenrolava do outro.
E tudo tinha um lado A e um lado B.
A música era para ouvir, ver e tocar.
Depois passou-me esta fita, claro.
As cassetes eram uma porcaria.
Algumas canções ficavam gastas.
E era preciso ter força nos dedos para ouvir música.
Tínhamos mãos desengonçadas como os botões.
Stop, eject.
Bendito século XXI.
É tudo muito mais sensível ao toque. Muito mais sofisticado e eficiente.
Neste momento, tenho centenas de canções no bolso.

Embora meta sempre a mesma cassete.

quinta-feira, 26 de março de 2015

The Voyage Out

O livro "The voyage out", primeiro romance de Virginia Woolf, faz hoje 100 anos.

"That was the strange thing, that one did not know where one was going, or what one wanted, and followed blindly, suffering so much in secret, always unprepared and amazed and knowing nothing; but one thing led to another and by degrees something had formed itself out of nothing, and so one reached at last this calm, this quiet, this certainty, and it was this process that people called living."

terça-feira, 17 de março de 2015

Eu e tu na floresta

Eu e tu na floresta.
Há muito tempo.
Tínhamos pernas e braços.
Os nossos pés pisavam raízes, escorregavam no musgo.
Às vezes, eu caminhava à tua frente. Outras vezes, caminhava atrás de ti.
Trazíamos paus de bambu na mão. Passávamos por baixo de troncos caídos. 
Passávamos por cima de troncos caídos. 
Tocávamos nas árvores e no chão, mergulhávamos os dedos na água. 
Um veado olhou para mim, eu olhei para ele.
Eu e tu no cimo da montanha. 
Uma floresta em cima de outra floresta.
Montanhas por cima de montanhas, árvores por cima de outras árvores. 
Tu deste um grito. Eu não.
Da minha boca saíam pequenas nuvens que se juntavam às outras nuvens.
Os nossos pés sobre folhas e pinhas. Eu e tu a magoar o silêncio. As pedras diziam: Shiu, mas nós não sabíamos calar os pés.
A certa altura atravessámos uma ponte suspensa e ficámos a ouvir o rio.
Eu e tu suspensos.
Os nossos pés na floresta. 
As árvores muito compridas, de tronco torcido. Raízes por cima de árvores caídas e ocas, por cima de outras raízes, por cima de pedras. 
Raízes como mãos. 
Árvores que carregavam outras árvores aos ombros, ramos enlaçados noutros ramos.
De repente fiquei sozinha. Eu e as pequenas nuvens que saíam da minha boca. 
A floresta mexia-se nas minhas costas, as árvores rastejavam atrás de mim. Como crocodilos.
Um ramo tocou na minha nuca. Um ramo que não existia antes.
Eu chamei por ti, mas tu não ouviste.
A floresta engolia as palavras e também as pequenas nuvens que saíam da minha boca, os meus passos, os teus passos.
A floresta como um monstro.
As minhas mãos muito velhas e ásperas. Como raízes.
Eu e tu a ganhar raízes.
E éramos verdes como o musgo, frios como as rochas, longos como cedros.
Eu e tu na floresta. 
Os mais antigos de todos.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Os dias em Nagasaki

Certos dias, nada evolui, nada se transforma. 
As noites são longas e a chuva perdura. O futuro é certo. A vida desacelera.
Uma pessoa espera pelo elétrico, outra pessoa escova o cabelo em frente ao espelho, outra bebe um café ao balcão.
E a vida, afinal, não é curta. É extremamente longa. Nunca mais acaba. 
Em certos dias, somos imortais.
O dia de amanhã será um dia igual a hoje, que é igual a ontem.
Há um certo conforto na previsibilidade dos dias. 
Tudo é imutável.
Noutros dias, a vida acontece. Nada é igual. Tudo muda. Onde não havia coisa alguma passa a existir tudo e o contrário também. Onde existia tudo, passa a haver coisa nenhuma.
Passear por Nagasaki tem esse efeito sobre os dias.
Nada é igual, nada é imutável.
Num dia, o carteiro passa a correr na rua, a distribuir cartas a toda a velocidade, e amanhã talvez não seja assim. Os corvos sobrevoam o parque, mas amanhã não se sabe. É uma incógnita. As crianças atravessam a rua com as educadoras, uma rapariga compra um bolo numa pastelaria, um homem ri-se sozinho no elétrico, duas adolescentes descem a rua a comer batatas fritas, e amanhã talvez não seja assim.
Certos dias não são iguais nem previsíveis. 
Em Nagasaki deve ser assim. 
Tudo é diferente 70 anos depois.
O desconforto da incerteza, a dúvida constante.
Talvez por isso o carteiro corra de casa em casa e as educadoras sorriam tanto.
Não temos controlo sobre quase nada. Não sabemos nada sobre quase tudo. E a vida, afinal, não é longa. É extremamente curta.
Tudo muda, tudo evolui.