segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Do voo e da queda

A avó disse que não gostava nada de andar de avião, mas que sempre desejou fazer parapente. Depois falou da diferença entre as duas coisas. Fazer parapente estava mais perto de voar. Concordei. Estávamos de mãos dadas, no velório do avô.

Antes disso, pela primeira vez, não tinha chorado ao sobrevoar Lisboa. A cidade surgia inteira e ela não quis saber do rio escuríssimo nem das luzes à beira das estradas. Estava visivelmente preocupada com outras coisas. Desapertou o cinto de segurança antes de ser seguro desapertar o cinto de segurança e pôs a mala a tiracolo para assegurar uma saída de rompante, sem obstáculos. (É preciso um certo vagar para a saudade.)

Não é impossível ficar e voar. Isto segundo Ed Asner, o velhote rezingão que decidiu, justamente, ficar e voar. O último filme da Pixar chama-se Up e fala, mais ou menos, de um homem que decide ficar em casa e voar. Ed Asner tem uma cara quadrada e óculos quadrados: é um homem aos quadradinhos. Ed Asner não existe, por isso teve de ser inventado. Ed Asner é parecido com o meu avô, mas o meu avô existe.

Bruxelas é uma cidade mais profunda e tenebrosa do que a Gotham City do Batman, mas tem mais portas e janelas do que Gotham City. É uma cidade real.

O último livro do Agualusa começa com uma mulher a cair do céu durante uma tempestade tropical. Caiu – veio caindo, nua, negra, de braços abertos – quase ao mesmo tempo que o raio. Era uma boa imagem aquela, da mulher caindo, de braços abertos.

Concluiu que tinha uma certa obsessão por quedas e não por voos. Preferia, por exemplo, o bungee jumping ao parapente. Também gostaria mais de cair na toca do coelho do que de voar para a Terra do Nunca. Não sabia se isto dizia alguma coisa sobre a sua personalidade. Estava-se nas tintas para a sua personalidade.
A Cat Woman caiu da janela, perdeu uma vida. O Batman voa. E ela gostava mil vezes mais da Cat Woman do que do Batman. Também tinha uma queda para a Cat Power, que tinha, por seu turno, uma certa queda para cair.

Por vezes, achava que tinha caído em Bruxelas. De braços abertos. Mas hoje não achava nada disso. Tinha de ir ao supermercado, antes que fechasse.
(Como aqui se disse, é preciso um certo vagar para a saudade.)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O meu avô e eu

Para o meu avô.


O meu avô morreu. Chamava-se Fernando Pessoa, mas não era poeta, era engenheiro.
Quando decidi estudar alemão na universidade, bateu-me nas costas três vezes. Disse-me que eu era a primeira da família a estudar Letras. (No peso da sua mão estava o peso da família inteira.)
O meu avô batia-me nas costas três vezes, quando eu fazia qualquer coisa acertada ou quando ele pensava que eu tinha feito alguma coisa acertada.
Também me disse que o alemão era uma língua fácil para quem tinha estudado latim. (O alemão é uma língua difícil, mesmo para quem tenha estudado latim, mas eu nunca disse isto ao avô.)
O meu avô não discutia as suas ideias: a própria ideia de discutir ideias irritava-o.
Ninguém discute com o avô Fernando.
O meu avô conta uma história e abre muito a mão direita para mostrar a dimensão da sua história, da sua inteligência, do seu feito. O meu avô conta uma história, várias histórias, mil e uma histórias, sempre as mesmas histórias. Fala dos pretos, de África, do Antigo Regime, diz mal de quase todos os povos, e todos o ouvimos respeitosamente. Ninguém discute com o avô Fernando.
Certo dia, quase sem querer, saí de Portugal. Estava na Alemanha há cerca de um ano e o meu avô sentou-se ao meu lado.
(Foi a primeira e única vez que o meu avô se sentou ao meu lado.)
Disse-me: Sobre essa tua decisão de viver no estrangeiro, interessa-me saber uma coisa. E nisto abriu a tal mão direita, para me mostrar o peso dessa coisa.
(Até então, eu não tinha consciência de ter tomado decisões na vida. A ideia de ter decidido viver no estrangeiro assustava-me.)
Prosseguiu: Eu queria saber, justamente, qual é o teu objectivo. E repetiu, apontando para mim: O teu objectivo.
Nessa altura e mesmo hoje em dia, fixar objectivos parece-me uma tarefa tão ou mais difícil do que aprender alemão, por isso, em vez de falar sobre temas difíceis, falei de outras coisas: da Alemanha, dos alemães, da importância daquela experiência. Falei também da Europa, de como era fácil viajar na Europa, de como o mundo estava tão perto. Disse-lhe ainda que queria estar sozinha, fazer qualquer coisa sozinha, descobrir qualquer coisa sozinha. O meu avô ouviu tudo isto com muita atenção, mas no final perguntou-me: E o teu objectivo? Qual é o teu objectivo?. Insistiu: Tens de ter um objectivo!. Encolhi os ombros. Respondi-lhe que o meu objectivo era conseguir. O meu avô bateu-me três vezes nas costas e levantou-se. Eu levantei-me também. Depois repetiu com o ar mais sério do mundo, como se o meu futuro começasse ali: O teu objectivo é conseguir.
O meu avô só não foi poeta, porque não quis.
Quando eu crescer, quero ser poeta. E conseguir como ele conseguiu. Para que ele me bata nas costas três vezes.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Dessi

Para a Dessi.

Chama-se Dessislava e faz 28 anos. A Dessislava é como o Dorian Gray, só que é uma mulher do século XXI e não tem um retrato secreto. A Dessislava é jovem para sempre, porque tem um riso fácil e um cabelo um pouco ingénuo, aos caracóis. Ou então porque é pequena ou parece pequena e encolhe os ombros quando se ri. A Dessislava ri à gargalhada, mas não faz muito barulho quando ri à gargalhada. Ninguém trata a Dessislava por Dessislava, toda a gente a chama Dessi. A Dessi abraça as pessoas, dá-lhes beijinhos. Tem uns dedos pequeninos e toca ao de leve nos nossos ombros, nas nossas mãos, diz que nos adora, que tem saudades nossas, que quer sair connosco, beber connosco, dançar connosco. A Dessi diz isto a toda a gente. A Dessi faz perguntas. A Dessi faz algumas perguntas descabidas. Outras perguntas são muito íntimas. Também faz perguntas políticas, perspicazes, profundas, de resposta difícil. Nem sempre ouve as nossas respostas às suas perguntas. Não sabemos porquê. A Dessi anda à procura do amor, da humanidade e de outras coisas abstractas. Tem um emprego das 9 às 5, é competente. A Dessi foi sozinha ao Chile. Também foi sozinha ao Japão e ao Havai, conhece sempre muitas pessoas nessas viagens. A Dessi conhece muitas pessoas em todo o mundo. Nasceu numa pequena aldeia na Bulgária, mas nós não sabemos onde fica essa aldeia. Já conhecemos a sua mãe, uma mulher cheia de força com música nos dedos que se mudou para Iémen. A Dessi foi a Iémen visitar a mãe. Há turistas que não voltam de Iémen. A Dessi voltou. Tivemos medo de que não voltasse. A Dessi podia ser uma personagem, mas é uma pessoa de verdade. Nós gostamos muito da Dessi.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O aprendiz de guitarrista

O vizinho de cima toca guitarra. Não, não toca guitarra, está a aprender. Dedilha as cordas, nota ante nota. Anda há meses nisto. Chamemos-lhe aprendiz de guitarrista.
Felizmente, toca guitarra clássica e o seu quarto fica por cima da sala de estar e não do quarto de dormir. A vizinha senta-se no sofá a ler uma revista e gosta de ouvir aquela guitarra, aprendeu a ouvir aquela guitarra, já sabe distinguir, por exemplo, os acordes novos dos antigos.
É verdade que aqueles sons ainda não são música, mas a vontade do aprendiz cativa-a. A vizinha de baixo gosta do aprendiz de guitarrista como quem gosta de um pássaro ou de um eléctrico repetido ao fundo da rua: o som conhecido sossega-a. Também a sossega a vontade do aprendiz de guitarrista, a sua perseverança, o seu entusiasmo.
O aprendiz de guitarrista fá-la pensar que talvez o mundo avance.
Por mais estranho que pareça, não conhece o aprendiz de guitarrista. Conhece, no entanto, a mãe e sabe que o aprendiz é adolescente, tendo em conta a idade previsível da senhora que disfarça a idade e o instrumento musical escolhido. Se fosse criança, o aprendiz tocaria flauta ou xilofone. Se fosse adulto, um instrumento qualquer que não guitarra clássica. (Os únicos adultos que tocam guitarra clássica aprenderam a tocá-la na adolescência. Nenhum adulto é aprendiz de guitarrista. Talvez seja aprendiz de clarinete. De piano. Ou de canto. Mas não de guitarra clássica.)
Esta não é, portanto, uma história de amor. A vizinha de baixo não tem idade para se apaixonar por aprendizes de guitarrista e tem o coração mais ou menos limitado ao homem ilimitado. Esta é uma história sobre música, muito embora aqueles acordes ainda não fossem nada ou quase nada ou, pelo menos, não propriamente música.
É que ontem, às 10 da noite, o aprendiz de guitarrista tocou um conjunto de notas seguidas que, juntas e compassadas, formavam, de facto, uma tímida melodia. O aprendiz de guitarrista repetiu aquele conjunto de notas e a vizinha de baixo parou de ler para ouvir. A vizinha de baixo e o vizinho de cima assitiam juntos e separados, com os olhos, os ouvidos e os dedos, à primeira de todas as melodias. Chegava, nas pontas dos pés, quase imperceptível, e atravessava os tímpanos, o coração, a boca e pousava quase nada no mundo.
O aprendiz de guitarrista repetiu a mesma combinação de notas vezes sem conta até que a melodia se tornou inegável e existiu naquelas paredes para sempre. A vizinha de baixo parou definitivamente de ler. Pousou os óculos e levantou-se. Foi, antes, regar as plantas.
Voltava a preenchê-la aquela esperança de que talvez o mundo avançasse.
Na arte, tudo era possível.
Depois voltou a sentar-se no sofá e ligou a televisão.
O aprendiz de guitarrista continuou a tocar a mesma melodia. Devagarinho. Igual ao mundo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Três desejos

Brevemente neste blogue, um dos três desejos.

Uma história. Uma personagem. Um discurso diarístico.
Estes eram os três desejos do narrador que, apesar de minúsculo, comia Kinder Surpresa como gente grande. Os desejos eram também maiores do que ele próprio, como certos sonhos de infância. Queria, urgentemente, uma história, uma personagem, um discurso diarístico. Na verdade, queria qualquer coisa que não aquele silêncio. Urgentemente.
Nos tempos livres, o narrador costumava brincar com as retroexcavadoras cor-de-laranja que descobria dentro dos ovinhos, mas ultimamente só tem comido o ovo de chocolate e deita fora os brinquedos.
O autor é mais maduro do que o narrador. Além de nada desejar, veste uma misteriosa gabardina preta para o proteger da chuva, do vento e dos outros. Comporta-se, aliás, como os gatos: senta-se contemplativo no parapeito da janela, mas o narrador não tem a certeza se o autor contempla alguma coisa, porque não mexe a cabeça nem as orelhas nem os olhos nem as patas. Ninguém contempla imóvel.
Era a opinião do narrador. À falta de metafísica naquela casa, come chocolates, mas não brinca. Tem três desejos mais fortes do que ele próprio.
Diz em voz alta: Uma história. Uma personagem. Um discurso diarístico.
Repete: Uma história. Uma personagem. Um discurso diarístico.
Depois grita, chora, esperneia.
O autor está virado para a janela, por isso não lhe vemos o rosto. Está tão quieto que mais parece uma estátua. Há quatro semanas que não se mexe (na verdade, o narrador tem medo que o autor tenha morrido à janela).
Por vezes, aproxima-se devagar do parapeito, põe-se em bicos dos pés para tocar na cauda longuíssima do autor, mas depois arrepende-se. Regressa ao seu cantinho, mais pequeno do que antes.
Hoje, no entanto, pela hora de almoço, algo acontece:
Belgavista é nome de peixe.
É o que diz, de repente, o autor. Depois salta para o chão e começa a lamber as próprias patas. É previsível que, além da vontade de escrever, tenha uma pontinha de fome. Daí a alucinação.
O narrador dá um pulo de contente, mas continua a comer chocolate. Na sua modesta opinião, Belgavista não é nome de peixe.
Mas isso, agora, pouco importa.