quinta-feira, 28 de maio de 2020

Subir o escorrega ao contrário

Dormi 3 horas e depois mais 3 horas, nada mau.
Pelas 7h e pouco, estou com os três na sala. O mais velho bebe biberão ao meu colo. O mais novo está na cadeira de baloiço e brinca com o meu pé direito. De vez em quando morde-me os dedos. (Au!) O do meio bate palmas. Está na cadeirinha alta.
Faço café. Ouço o mais velho dizer ao robô verde: “Eu quero ser grande e pequenino.”
Vou cortar o cabelo ao meio-dia e meia. Andava tudo tão preocupado com os cabelos, que também marquei. Mas na verdade sinto-me bem assim. Desgrenhada. Desbocada. Desgovernada. 
A verdade é que quase nunca vou ao cabeleireiro.
Uma vez um amigo manifestou o seu desagrado por eu ter dado um belo corte na trunfa. Olhou para mim, tentou explicar: “É que o teu cabelo fazia parte da tua personalidade”.
Entro no cabeleireiro, desinfeto as mãos, ponho a máscara das cornucópias.
Estou agora em frente ao espelho e acho que as minhas fuças também fazem parte da minha personalidade. Cada vez que ponho a máscara das cornucópias, penso na minha personalidade e acho que não me fica nada mal perder caráter. 
Nunca é demais ter menos.
A estagiária lava-me o cabelo. Os dedos da mocinha a arranhar a minha cabeça e o meu ego, a dedilhar o meu cabelo. Massaja-me as têmporas e a nuca. Há que tempos que ninguém tocava na minha cabeça. Neste momento não sou mãe de ninguém. Sou grande e pequenina.
A cabeleireira está grávida. O bebé nasce daqui a seis semanas, coitada. É um rapaz. Que bom, parabéns. Explica-me que tem muita sorte porque o marido vai poder assistir ao parto. “Antes não podia.” Credo. Agora já pode, mas depois não pode sair. Como assim, não pode sair?
Entra com a mulher e sai com a mulher e com o filho. Não pode sair a meio, nem sequer para ir a casa. A cabeleireira explica melhor: Poder, pode, mas já não o deixam voltar. 
Fico a pensar que em quase tudo na vida é assim. Podes sair, mas já não podes voltar.
A cabeleireira pergunta-me. “Você tem imensos filhos, não é?” Eu digo: “Três rapazes.” A pergunta do costume: “E não vai tentar a menina?”
Quando anunciei que os gémeos eram rapazes, um amigo disse-me: “Andas a reforçar a sociedade patriarcal.”
Ri-me bué.
Entro no parque. Está quase vazio. Uma miúda tenta subir o escorrega ao contrário. Corre pelo escorrega acima. Nunca consegue chegar ao topo, mas não desiste. Escorrega até ao chão, dá uns passos atrás para ganhar balanço, atira-se ao escorrega, sobe sobe sobe, mas lá em cima começa a deslizar, cai para a frente e escorrega toda esparramada até cá abaixo. Sobe outra vez. Tem oito ou nove anos. Não vejo nenhum adulto com ela. Olho para a miúda a subir o escorrega ao contrário e penso nesta pandemia, penso na sociedade patriarcal, penso no pedregulho do Sísifo a rolar montanha abaixo, penso naquelas coisas da eternidade e do absurdo, e aceito o castigo.



Começo a trabalhar amanhã. Estou tão gorda, tão farta, tão desorientada. 
Os gémeos fazem hoje nove meses. As pessoas dão-me os parabéns. Penso nessa manhã de agosto. O médico entrou na sala à hora marcada. Disse “Bom dia” e cortou-me a barriga. Não foi assim um grande feito. 
Sou uma autêntica fraude. A escrever. A traduzir. A amar. A viver. Até a parir. Não dou uma para a caixa.
Felizmente cortei uns centímetros à minha personalidade. Estou ligeiramente mais leve. Existo menos. Durmo menos. Vivo menos. Mas lá vou subindo o escorrega.
Vou rematar este texto com uma frase do meu querido sogro: “Até aqui chegámos nós.”

segunda-feira, 25 de maio de 2020

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Estou a ouvir

No outro dia encontrei um amigo na rua. Ele ia para cá, eu ia para lá. Um metro e meio de distância. Então, como vai isso? Eu disse: “Estou tão farta.” E ele disse: “Estou tão bem”. A sério? A sério. Ele disse: “Eu gosto é do silêncio e das ruas desertas, não se vêem carros, não se vê vivalma, uma maravilha”.
Explica-me que as pessoas o cansam, que a vidinha o cansa, marcações, roupa, conversas, reuniões, pessoas, pessoas, pessoas.
Se há coisa que esta epidemia me deu de mão beijada e desinfetada é a constatação cruel de que eu preciso muito mais dos meus amigos do que eles precisam de mim. Sou esta figurinha espaçosa e expansiva, mas faço amizade com egos solitários e confinados. É pena.



Eu cá odeio este silêncio. É um silêncio falso. É um silêncio de abandono e desânimo. É o silêncio das coisas mortas. Não é um silêncio bonito das serras e das florestas. O silêncio da natureza é um silêncio habitado, é um silêncio de rios e pássaros e brisa, e pedras e folhas, e cães e sapos.
Onde há vida, há som. Li isso no outro dia num livro lindo sobre a paisagem. Fiquei a saber que tudo isto é paisagem, eu, esta janela, este prédio, aquele pinheiro gigante, a praceta lá em baixo, a rotunda. Tudo o que vemos e também tudo o que ouvimos.
Às seis da manhã, os pássaros não se calam e eu fico a ouvi-los. 
Eu gosto de sons e de vozes. Gosto de chinfrim, de chilreio, de murmúrios. Eu sou toda ouvidos. Eu sou toda garganta.
Ultimamente tenho-me especializado em sirenes e motores. O meu filho mais velho grita: “É a polícia!” E eu corrijo-o: “É uma ambulância.” Ele vai até à janela aos gritos: ti-nó-ni, ti-nó-ni. Eu explico-lhe que o som está a ficar cada vez mais baixo, que a ambulância está muito longe. Ele repete: “Está loooooooonge”. Sem querer, ensinei-o a escutar. Um carro passa, um camião, uma mota. Ele pergunta: “O que é?” e eu encosto a mão ao ouvido. Digo: “Estou a ouvir” e fico a ouvir. O meu filho faz igual: mão no ouvido, ar compenetrado, “Estou a ouvir”. Os dois quietos e calados, a ouvir.
Por esta altura sabemos distinguir os camiões das carrinhas. Conhecemos as diferentes sirenes. Sabemos dizer se estão longe ou perto, se estão a aproximar-se, se vão passar nesta rua.
Às sete da manhã passa o camião do lixo. Ele corre para a janela. Ficamos a ver os homens a empurrar os caixotes. Depois o camião vai-se embora e lá vem novamente o silêncio. Um ou outro carro ao longe. O meu filho a ver a rua. Diz: “Não há ninguém!”. Encostamos a mão ao ouvido. O meu filho: “Não ouve nada”.
Não tenho saudades dos carros, mas tenho muitas saudades da vida. Estou tão farta.
Acabou-se o silêncio. Que bom.
Venha daí a Covid.
“Estou a ouvir.”

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Mary John na Venezuela

Zás! Na Venezuela a Mary John é um dos “mejores libros para niños y jovénes” de 2020. Quem o diz é o Banco del Libro, organização que promove a literatura e a leitura em todo o território venezuelano.


Num país à beira do colapso, onde a maior parte da população é pobre, não tem acesso a alimentos nem a combustível (nem sequer a água potável - como assim, lavar as mãos?), os livros podem parecer bens muito pouco relevantes. Mas para concretizar a mudança, é preciso estimular a imaginação e aguçar o pensamento.

Ler pode de facto salvar.

No blogue do Banco del Libro, escreve Freddy Gonçalves sobre Mary John “En tiempos donde el discurso feminista va escalando con tanta fuerza, aparece esta novela que, sin pretenderlo, reflexiona sobre el empoderamiento en la figura de una chica común y corriente.” Texto integral aqui: http://bancodellibro.blogspot.com/2020/05/hacia-los-mejores-2020_45.html?m=1

Estou para aqui com um empoderamento que só visto. Fico a imaginar a Mary John a entrar num bairro da lata em Caracas, a desembarcar na Amazónia, a caminhar algures na cordilheira dos Andes e sinto enorme esperança e orgulho. Esta miúda é só surpresas!

sábado, 9 de maio de 2020

Outstanding news!

Outstanding news!
“Assim ou assado” é um em “100 Outstanding Picturebooks”.
Esta mostra digital foi selecionada por especialistas em álbum ilustrado e literatura infantil e é promovida pela plataforma dPictus a propósito da edição digital da Feira do Livro Infantil e Bolonha.

https://dpictus.com/100-outstanding-picturebooks


sexta-feira, 1 de maio de 2020

10 álbuns

A Ana Biscaia desafiou-me (no Facebook) a publicar as capas dos 10 álbuns que mais influenciaram o meu gosto musical. Fiquei toda feliz e melodiosa com o desafio. Não que eu perceba alguma coisa de música. Não percebo puto. Na adolescência andei na guitarra e odiava o solfejo. Os ditados agoniavam-me. Nunca percebia se aquilo (aquilo, o quê?) ia para baixo ou para cima, não tinha ouvido nenhum. Mas gostava de tocar guitarra e de desenhar claves de sol. 
De resto não sou muito eclética, não sigo artistas, não me atualizo. Hoje em dia até ouço pouca música, mas durante a maior parte da minha vida ouvi muito e muito alto e de qualquer maneira: no computador, na rádio, nos auscultadores, nas colunas gigantes que entretanto instalámos na sala. Há canções que sei de cor, há canções que me fazem voar e sonhar, há outras que me tiram o chão e outras que me tiram o céu.
Já fiz várias listas. Numas estava o Nick Cave, noutras estava o Elvis Presley. Mas sinto-me sempre perdida a meio. As lacunas são grandes. Há rock a mais, pop a menos. Então e a bossa nova? A música portuguesa? Simplifiquei a coisa. Escolhi 10 álbuns que transformaram a minha relação com a música, que trouxeram algo novo aos meus ouvidos e ao meu sistema nervoso. Aproveitei para viajar pelas diferentes fases da minha vida. Há revelações que associo à infância e outras à adolescência e outras a esta vida adulta em Bruxelas.
Olho para a minha lista e acho tudo muito previsível e, ao mesmo tempo, inesperado. Como se estivesse a ouvir isto tudo pela primeira vez, embora já conheça bem esta banda sonora.
O meu primeiro ídolo musical foi o Michael Jackson. Eu tinha 9 anos e tudo nesse homem me encantava. O corpo, a voz, os gritos, a coreografia, aquele moon walk, as luvas brancas, a criança que ele tinha sido e que continuava a ser. Cheguei a este Rei do Pop com o álbum Dangerous, em 1991. A escola inteira andava a ouvir esta cassete. E todos os dias havia coreografias novas para o Black Or White.

Na pré-adolescência surgiu na minha vida um álbum que eu conseguia ouvir do princípio ao fim sem interrupções. Era o meu primeiro álbum em língua portuguesa, mas o álbum em si não tinha nada a ver com música portuguesa. Falo do “Viagens” do Pedro Abrunhosa & os Bandemónio. Eu tinha 12 anos e tudo nesse álbum me parecia mais que perfeito. O título (Viagens!), a capa colorida e abstrata, as letras, aquele saxofone capaz de melodias às curvas, a voz insuficiente do Pedro Abrunhosa, aquele jazz meio pop. O que era aquilo? Não sei. Mas era lindo.

O rock propriamente dito apareceu na minha vida com os Dire Straits. Todas as guitarras elétricas e acústicas ganham um novo fôlego nas mãos do Mark Knoffler. No outro dia ouvi uma entrevista com ele, em que ele falava das várias guitarras. Pegava nelas, tocava uns acordes e explicava as diferenças. Havia guitarras que produziam “thicker sounds” ou “thinner sounds”. Sons mais espessos, sons mais finos. Nas palavras dele, “eu quero que a guitarra fale por si”. Caramba, é que falam mesmo.

E música brasileira? Cadê?
Hoje em dia gosto muito de bossa nova e ando numa fase João Gilberto, mas a minha perdição sempre foi o Caetano Veloso. A delicadeza inteligente da voz, da música, das letras. Chamo para aqui o álbum “Prenda Minha” (1998). Já conhecia Caetano Veloso antes, mas este álbum foi o primeiro que eu tive e é um dos álbuns ao vivo que eu mais gosto de ouvir. Ainda hoje.


Já que falei de álbuns ao vivo, não dá para passar por cima do Dave Matthews Band. Lembro-me de o ouvir pela primeira vez. Um rock e uma voz sempre a subir numa mistura de jam session e requinte. Aquele Crash Into Me, numa gravação ao vivo, era ao mesmo tempo natural e intrincado. Tive fases em que só me apetecia ouvir Dave Matthews Band. O meu coração não aguentava mais nada e já não se contentava com menos.

Hoje em dia ouço muito indie rock ou indie pop ou rock alternativo ou lá como se chama. Gosto sobretudo daquele rock mais pausado e melancólico que já não é bem rock. É o quê? Sei lá.
Quando cheguei a Bruxelas passei horas e horas, dias e noites, a ouvir Cat Power. Em 2007 já não comprava álbuns físicos. Tinha um iPod cor de laranja. Foi nele que ouvi obsessivamente The greatest. Não faço ideia quantas vezes ouvi este álbum, mas o iTunes deve saber. Coisa mais linda e solta e triste e delicada e tudo. De vez em quando volto a este álbum e gosto sempre.

Passei muitas horas a escrever ao som de M Ward. Há qualquer coisa no timbre e no ritmo do M Ward que me fazem voar e sonhar. É sempre difícil voltar a esta vida sem asas nem sonho. Gosto de todos os álbuns. Mas ouvi o Wasteland Companion em repeat horas e horas a fio. Na rua, no sofá, na sala, na cama. Muita companhia me fez este Companion em muitas noites de escrita.

Em 2008 a música portuguesa levou uma paulada na cachimónia. Tau! Foi o álbum de estreia dos Deolinda. Chamava-se Canção ao Lado, e não batia nada ao lado. Batia mesmo de frente. Eu ouvia a voz da Ana Bacalhau e as letras do Pedro da Silva Martins, e sentia-me ainda mais portuguesa, ainda mais eu própria. 

Pouco tempo depois descobri Mayra Andrade. Não me lembro bem como nem onde nem quando. Mas este Navega entrou por mim dentro e nunca mais saiu. A Mayra Andrade poderá ser a única mulher por quem eu e o meu marido nos apaixonámos ao mesmo tempo. Tínhamos bilhetes para o concerto que ela ia dar no Botanique na próxima semana. O vírus meteu-se no meio e já não vamos vê-la nem ouvi-la. Mas ia ser tão bom. Tão bom, tão bom, tão bom.

Há uns três anos tropecei e caí nos Future Islands. Uma palpitação eletrónica à la new wave com uma voz que traz tudo dentro: vigor, cansaço, dor, tristeza e uma catarse feita de resistência e angústia, tudo marcado por urros e grunhidos dentro de cada uma das canções. É preciso ouvir para crer. Ouçam. 

Nem acredito. Cheguei ao fim desta lista. Tão bom partilhar. Estou com os ouvidos cheios de som e emoção. Vou ouvir música. Ou então abrir a janela e dar um grito.