quarta-feira, 29 de outubro de 2014

E se o mundo inteiro lesse o mesmo livro?

No outro dia fui à livraria Passaporta ouvir o Bernardo Carvalho, o escritor brasileiro (e não o ilustrador português). O escritor tirou do bolso do casaco um chorrilho de perguntas que lançou ao público. Ficámos todos com ar de ponto de interrogação. "Não há nada mais desagradável que a dúvida."
Bernardo Carvalho fez uma leitura enérgica em português e o público seguiu a tradução em francês, neerlandês e inglês que ia sendo projetada num écrã gigante.
No Passaporta é sempre assim. "Todo mundo fala, por assim dizer, de forma figurada, a língua que todo mundo entende".

Segue-se uma citação livre do texto interrogativo "O óbvio ululante" que o autor leu na conferência:

Há alguns anos, lá na empresa, alguém teve uma ideia genial: E se o mundo inteiro lesse o mesmo livro?

E se o mundo inteiro fizesse exatamente a mesma coisa, achando que faz diferente, não seria mais fácil e natural supervisionar o mundo e, por conseguinte, encontrar o livro que todo mundo vai ler? E se, para isso acontecer, a gente criasse um dispositivo no qual quanto mais as pessoas lessem uma coisa, mais a mesma coisa seria lida e quanto mais as pessoas vissem uma coisa, mais ela seria vista? Não parece óbvio? E não seria mais fácil para todos, lá na empresa, delegar o trabalho de achar o livro que todo mundo quer ler a esse dispositivo redudante, natural e óbvio?

Se as outras empresas dão ao mundo o que o mundo quer, por que a nossa haveria de dar ao mundo o que nem todo mundo quer? É a lei da oferta e da procura. Não é lógico e natural? A lógica e a natureza são as mães de todas as coisas. A começar pela economia. E por que não pela cultura?

E se usássemos a língua que todo mundo fala, por assim dizer, de forma figurada, a língua que todo mundo entende, para fazer todo mundo ler o mesmo livro? Não seria lógico e natural? E se fizéssemos as pessoas das mais diferentes línguas escrever cada vez em menos línguas até chegar a uma só, a mesma língua para todos?

E qual melhor atrativo do que saber que se escreve na língua que todo mundo entende? E se, para persuadir os renitentes, que se recusassem a escrever nessa língua comum, a gente desse a impressão de que continuavam escrevendo em línguas diferentes?

E se a gente inventasse um nome para todos esses sotaques incorporados na mesma língua, numa única língua para todo mundo entender? Algo como multiculturalismo? Não seria incrível?

E se a gente criasse um mecanismo e uma lógica, com base matemática e científica, por meio dos quais quanto mais se visse uma coisa mais essa coisa seria vista e quanto mais uma pessoa lesse uma coisa, mais as outras seriam levadas a ler a mesma coisa, achando que chegavam a essa coisa por mérito e esforço próprio? Não seria incrível?

Para que contrariar as pessoas se podemos concordar com elas e com o que elas acham natural? Para que provocar o público? Para que forçá-lo a ver coisas que ele não vê a olho nu? Ou que não quer ver? Que presunção é essa, meu Deus?

Então, se perguntarem o que é bom, que é que eu digo? E quando eu já não estiver aqui para dizer? Ora, basta deixar as pessoas dizerem que bom é o que é natural, e o natural é o que elas acreditam. Que foi? Deus não é bom? Então?

No que é que vocês mais acreditam: numa história que é o relato de alguma coisa que realmente aconteceu ou numa loucura qualquer tirada da cabeça singular de uma pessoa? O que é que tem mais ressonância? O que de fato ocorreu e todo mundo pode comprovar ou os pensamentos antinaturais de um doido?

Ninguém quer ler livros que põem em dúvida o que estão contando. Percebem?
Tem que fazer acreditar para ser bom. Se começa a questionar, acabou.

Os terroristas da exceção acreditam nas singularidades, de verdade! E nos problemas. Eles dizem que a arte deve apresentar problemas, que a arte não tem de criar soluções. Eles querem criar problemas! Mas o público quer soluções. Ninguém precisa de mais problemas.

Onde na empresa funcionamos por pleunasmos, os terroristas da exceção funcionam por paradoxos. E aonde é que isso pode levar? A um mundo de dois ou três gênios, dizendo coisas que contrariam o que todos nós pensamos em consenso? É isso? Desde quando literatura é reflexão? E onde fica o  prazer da leitura? Quem é que quer ler o que não dá prazer?

E o que é que eles querem? Criar tantas visões de mundo quantos livros forem publicados? E como é que isso é possível com a quantidade de livros que precisamos publicar para que o mundo continue caminhando na mesma direção e nós sigamos recebendo nossos salários? Querem ofender o público e gosto do público às custas dos nossos bônus?

Não há nada mais desagradável que a dúvida. Quem quer duvidar? E para que serve a literatura se não for para confirmar e agradar? Eu pergunto: Para quê? Que contraexemplos eles têm para dar? Os impressionistas? A arte moderna? A ciência? É isso? É pra rir?

Curiosamente, nesta noite interrogativa, aconteceu um verdadeiro ato de "terrorismo de exceção": o Bernardo Carvalho venceu o Prêmio Jabuti pelo seu romance "Reprodução".
Se calhar é este livro que toda a gente vai ler (eu vou).
Não seria lógico e natural?

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Folhas soltas

Não há nada mais solto do que escrever em folhas soltas.
A letra sai folgada e espaçosa, as palavras são desprendidas, não pertencem a ninguém.
As folhas soltas são livres e independentes, sabem a mar e a vento.
É possível fazer uma bola com uma folha solta. Um barco, um avião. Outra coisa qualquer.
Algumas folhas soltam-se e nunca mais regressam. São devassas e infiéis.
Tenho saudades de escrever em folhas soltas. No verso de papéis antigos, em folhas de rascunho.
Algumas folhas soltas dizem uma coisa de um lado e outra do outro. Por vezes, são feias porque vêm riscadas, emendadas, desalinhadas.
Alguns livros não deviam ser livros.
Deviam ser publicações abertas. Uma caixa de folhas soltas. Um envelope. Um dossiê.
Poemas e histórias desapertados. Sempre dava para atirar literatura pela janela.
Toma lá um conto da Alice Munro.
Um poema do Alexandre O'Neill.
Uma carta do Albert Camus.
Uma folha solta é espontânea e criativa. Desenlaça uma história sozinha. Foi assim com o Paperman. Era assim comigo.
Eu já não escrevo em folhas soltas, não sei porquê. Tenho cadernos previsíveis de folhas muito presas. Sou mais organizada, menos desenfreada, menos desunida. Tenho prisão de ventre.
O mais próximo que tenho de folhas soltas é um caderno de argolas. Pelo menos, dá para arrancar as folhas e libertá-las da ordem. E abaná-las. Amachucá-las. Deitá-las no lixo. Pô-las de castigo na gaveta.
Mas as folhas arrancadas não são folhas soltas.
São folhas tristes e abandonadas.
Não são rajadas de letras.
Não são desenfreadas.
Não sabem a vento.