quinta-feira, 13 de agosto de 2015

À porta fechada

Chegas a casa, fechas a porta, rodas o trinco.
Olhas para trás para te certificares de que rodaste o trinco.
Sim, rodaste.
Tu suspiras. Há um certo alívio no isolamento. Uma liberdade na clausura.
Como assim?
Tu olhas para a tua mão direita, que rodou o trinco, e não gostas da tua mão direita, porque rodou o trinco. É um movimento novo.
Estás trancada.
Como se fosses um tesouro. Uma pérola. Uma relíquia. Uma princesa isolada no cimo da torre.
Tu pensas: É mais seguro assim. É tão mais seguro assim.
Estás na tua casa, na tua torre. À porta fechada.
E ninguém entrará aqui. Absolutamente ninguém.
Só a porteira poderia entrar na tua casa.
Não. Nem sequer a porteira. (Está de férias.)
Tu suspiras um sufoco bonito.
Só o teu marido entrará. Há de voltar não tarda.
E de repente lembras-te daquele teu amigo, que também tem a chave da tua casa.
O teu amigo podia entrar agora mesmo.
Podia, não podia?
Sim, podia.
Por que deste a chave da tua casa?
Um ladrão também poderia entrar na tua casa. Primeiro espreitaria pela fechadura e depois entraria de rompante ou então devagarinho, sem fazer barulho.
Tu escutas o barulho da casa. Tu não fazes barulho para escutares o barulho da casa.
É como se jogasses às escondidas com o mundo. É como se jogasses às escondidas contigo própria.
E antes não eras assim, pois não?
Não.
Antes perdias as chaves aqui e ali. O senhorio ralhava contigo. Mudava-se o trinco. Mudava-se o senhorio. Perdias as chaves outra vez.
Nem sequer trancavas a porta por dentro ou por fora. Trazias para casa as chaves de outras pessoas. Chaves de hotéis longínquos.
Também te esquecias das chaves em casa. Ficavas do lado de fora. Pedias à senhora da livraria que ligasse a um serralheiro. A senhora da livraria oferecia-te guarida, tu recusavas. Ligavas a uma amiga. Dormias num sofá. Em lençóis mais frescos do que os teus.
Tu estás fechada dentro da cabeça e pensas nessa pessoa que não trancava a porta de casa.
Hoje acordas de manhã e rodas o trinco. Abres a porta, abres os olhos e dás com as tuas chaves do lado de fora. As tuas chaves de casa penduradas na porta, a convidar qualquer um a entrar. Esqueceste-te delas ali, na fechadura.
E é como se o mundo inteiro jogasse às escondidas contigo. É como se tu própria jogasses às escondidas contigo.
Por um lado, fechas-te por dentro. Por outro, atiras a chave à rua.
De um lado da porta, és uma coisa. Do outro lado, és outra coisa.
Tu espreitas pela fechadura e vês o teu reflexo, a tua sombra.
Uma parte de ti está fechada em copas. E a outra está aberta ao mundo.