segunda-feira, 30 de março de 2020

O horizonte temporal

Isto continua a parecer um episódio do Twilight Zone (não vi o Black Mirror). Ou uma temporada mesmo.
Pena não dar para avançar rapidamente até ao fim do último episódio. Não que eu queira saber exatamente como é que isto acaba. Não quero saber se vamos morrer, enlouquecer, embrutecer ou despertar para uma nova humanidade. Isso depois logo se vê. Mas gostava muito de saber ao certo quando é que isto acaba. Em que mês. Mais precisamente em que dia. Se vai ser antes do verão, depois do verão, no inverno ou para o ano que vem. Na verdade acho que estou um pouco obcecada com este horizonte temporal.
No meu círculo ninguém parece muito incomodado com isto. Dizem-me que esta temporada há de chegar ao fim, que há de durar o tempo que durar. O melhor talvez seja não pensar muito nisso. É ir vivendo o dia a dia. Não é melhor assim? Se pensarmos bem, talvez não chegue a haver propriamente um fim. É possível que seja tudo muito gradual. Se calhar as escolas abrem, mas a malta continua a trabalhar em casa. Se calhar os cafés abrem, mas a regra do distanciamento social mantém-se. Se calhar vamos passar a andar de luvas e de máscara. Se calhar vira moda andarmos por aí todos desinfetados e distantes. Possivelmente vamos deixar de dar beijinhos e abraços, qual é o mal? Mas ainda é muito cedo para saber, não vale a pena especular. Um dia de cada vez. 
Algumas pessoas arriscam uma data: lá para junho ou julho. Talvez setembro. Talvez 2021. Uma coisa é certa: isto vai demorar.
A mim ajudava-me barés ter um prazo em vista, uma meta. O tal horizonte temporal.
Sempre dava para ir riscando os dias num calendário, contar os dias que faltam. Sempre dava para ver se estamos no início ou já a meio.
Reparo agora que sou uma pessoa que olha bastante para o calendário. Não só para saber dos compromissos do dia ou da semana. Mas para antecipar as cenas dos próximos episódios. Neste momento estamos no final de março. Ora, deixa cá ver o que vai acontecer em abril e em maio.
Reparo também que, em quase todas as fases da minha vida, me orientei pelo fim de cada uma dessas fases. O fim de um ano letivo, por exemplo. O fim de um estágio. O fim da bolsa de estudos.
Não que aguardasse esse final com entusiasmo ou impaciência. Às vezes sim, porque esse futuro próximo seria melhor do que o presente. O fim da época de exames, por exemplo. O final de um dia de trabalho. O fim de semana. Mas outras vezes, não. Não queria nada chegar ao fim das férias do verão, não queria nada voltar da Eurodisney. Mas a noção de que esse fim haveria de chegar ajudava-me a apreciar o presente, a aproveitar todos os minutos.
Em qualquer dos casos, há sempre uma contagem decrescente a acontecer na minha cabeça, nem que seja no meu inconsciente. 
Quantas horas até ao nascer do sol. Quantas semanas até ao fim da gravidez.
Quantas páginas até ao final do livro.
O fim é sempre o resultado de um esforço, de uma espera, de uma experiência.
A noção de que tudo acaba é o que me ajuda a valorizar o presente. No extremo, aprecio a vida por saber que ela acaba e que é feita de muitos fins. (Ia escrever “A vida passa a vida a acabar”, mas depois arrependi-me.)
Ora, neste caso em concreto, é impossível prever um desfecho, um final feliz, uma data-limite. Quando vamos voltar a ver os nossos amigos e familiares? Quando vamos poder entrar num café? Quando vamos voltar a viajar? Quando vamos regressar ao nosso local de trabalho? Quando vão abrir as escolas?
Eu olho para o calendário e sinto falta desse horizonte temporal. Se soubesse em que dia acaba este pesadelo, conseguia olhar para esta clausura de outra maneira. Isto não passaria de uma fase, de uma etapa, de um período. Talvez conseguisse até tirar algum partido disto. No entanto, sem essa luz ao fundo do túnel, fica só mesmo o túnel e a escuridão. Sinto-me um pouco à deriva. Eu olho para o calendário e não sei dizer se esta temporada ainda vai durar muito tempo. Desconfio que sim, mas gostava de saber ao certo. Para ficar a aguardar esse fim com enorme expectativa.
Se eu não fizesse parte desta série, não ia perder tempo com ela. É tipo um Lost com toque de Desperate Housewives sem Office nem Friends nem Prison Break à vista.
Pensando bem, o Twilight Zone era exatamente isto. Se calhar estamos mesmo na tal quinta dimensão. Se calhar ainda estamos no primeiro episódio.


Por curiosidade e nostalgia, andei na net à procura da primeira temporada do Twilight Zone. O primeiro episódio chama-se “Where is everybody?” (“Onde está toda a gente?”) e começa com aquela mítica narração que passo a citar e a traduzir para terminar este texto:

“There is a fifth dimension beyond that which is known to man. It is a dimension as vast as space and timeless as infinity. It is the middle ground between light and shadow, between science and superstition, and it lies between the pit of man's fears and the summit of his knowledge. This is the dimension of imagination. It is an area we call the Twilight Zone.”

[Há uma quinta dimensão para lá do que é conhecido pelo ser humano. É uma dimensão vasta como o espaço e intemporal como o infinito. Fica a meio caminho entre a luz e a escuridão, entre a ciência e a superstição, e situa-se entre o abismo dos medos do ser humano e o cume do seu conhecimento. Esta é a dimensão da imaginação. É uma área a que chamamos zona do crepúsculo.]