sexta-feira, 6 de março de 2020

Macau, no verão de 1999

Excerto do texto que escrevi para o Colóquio "Até às raízes da Lusofonia" que se realiza hoje na Universidade de Gent.

Ainda sobre Macau, no verão de 1999:

Vi, naquela ponta do continente asiático, ruas e praças onde o chão se vestia de calçada portuguesa. As placas das ruas estavam escritas em português. Lembro-me de o guia apontar para essas placas e dizer que elas iriam desaparecer em breve, que a língua portuguesa ia sair daquelas ruas.

Eu tinha 16 anos, quase 17.

Nesse verão de 1999 vi, no meio de um enorme largo, as ruínas de São Paulo. Foram as ruínas mais belas e trágicas que alguma vez vi. Uma fachada em granito e uma escadaria. Nada mais do que isto. Tudo o que restava daquela igreja era uma imponente fachada em granito e uma escadaria. 


Foto que roubei à Wikipédia

Lembro-me de termos tirado uma fotografia de grupo nesse local. Lembro-me de pensar nesse momento que tudo aquilo era história: aquela fotografia, aquele grupo, aquele chão. Lembro-me de ganhar consciência de que tudo acaba um dia: os impérios, os edifícios, as nações, as pessoas, os povos e até as línguas. Naquele verão de 1999 eu percebi que tudo o que existia era demasiado frágil. De que um incêndio pode engolir uma igreja. De que uma língua pode desaparecer das ruas. 

Foi também em Macau que percebi que estamos todos dentro das nossas gaiolas, dentro da nossa época, dentro das nossas crenças, dentro da nossa língua, mas que é possível abrir a porta e chegar a quem é diferente de nós. Que uma pessoa pode fazer a diferença. Que tudo isto dura muito pouco.

Talvez por isso tenha escrito tanto nessa época. Para fixar a existência, para existir um pouco mais. Talvez por isso ainda hoje escreva tanto sobre a adolescência, essa época em que precisamos tanto de viver, em que somos capazes de infringir todas as regras para nos salvarmos.

Foi nessa viagem a Macau que me apercebi de quão diferentes somos e ao mesmo tempo de quão parecidos conseguimos ser. Para mim a lusofonia também é isto: festejarmos o que temos em comum, mas sobretudo o que não temos em comum.

Eu chego ao final deste texto e compreendo finalmente que, ao contrário do que pensava, tenho vivido até às raízes da lusofonia (para aproveitar o título deste colóquio), que é um enorme privilégio ser portuguesa, lusófona e europeia, e que possivelmente a lusofonia fez de mim linguista e escritora.