segunda-feira, 23 de março de 2020

Mãe e filho

Se calhar não devia dar tantos beijos aos meus filhos. Não sei. Se eu tiver o bicharoco, hão de estar todos infetadinhos. 
Penso nisto sempre que lhes beijo as bochechas e as pernocas e as covinhas das mãos e o duplo queixo e aquelas cabecinhas mornas, mas o meu instinto é burro que nem uma porta, a minha boca vai direitinha a eles e beija-os não sei quantas vezes seguidas, xuac xuac, xuac xuac, grande estúpida. Eu beijo-os e penso que este poderá ser o beijo fatal, por isso apresso-me a dar mais um e mais este e este ainda. Muitas vezes mordo-os também. Mas eles não se ficam. Puxam-me o cabelo, dão-me unhadas e tabefes. Beliscam-me, arranham-me, mordem-me. 
Se o isolamento me der para a loucura, vou acabar por comer os meus filhos. Sempre fui um bom garfo. E não sou a única mãezinha doente.
Parece que a natureza está cheia de mães que ingerem as suas crias. Insetos, anfíbios, répteis, felinos, roedores.
Na mitologia grega há vários deuses que comem os filhos, mas também há filhos que matam os pais.


A bem dizer, se este isolamento durar muito tempo, é possível que venham a ser os meus filhos a devorar a progenitora. São fortes, ingratos e mais que as mães.
Também disto tem a natureza aos montes. Entre as aranhas, os escorpiões, as minhocas e novamente alguns insetos e anfíbios há muita cria que se alimenta das mamãs.
A relação entre mãe e filho está cheia de contrassensos. Afeto e sacrifício. Devoção e delírio.
Entre mãe e filho não há barreiras. Não há espaço. Não há etiqueta.
Entre mãe e filho não há cá distanciamento social.
É pena.
São eles que vão dar cabo disto tudo: as mãezinhas e os seus filhos. 
Amor e gula. Apego e desejo. 
Carícia e contágio.