sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Alegoria da caverna

Dizem-me: "Não és sombra do que eras!" e não percebo logo o sentido da frase.
Reajo sem pensar: olho para trás à procura da minha sombra e, em vez dela, vejo outra pessoa. Assusto-me e viro-me para a frente.
Não olho para trás durante muito tempo e imagino um monstro nas minhas costas, pronto para me devorar.
Lembro-me do sombrio Peter Schlemihl que se tornou sombra de si próprio depois de vender a sombra ao diabo. Penso: "Se não sou sombra do que era, hei-de ser sombra de outra coisa".
Fecho os olhos e regresso à infância, a uma noite de Verão em que Peter Pan voou pela minha janela deixando a sua sombra no meu quarto. (Era uma boa amiga a sombra de Peter Pan, brincávamos juntas pela noite fora à luz do candeeiro.)
Segredam-me ao ouvido: "Não tens sombra porque estás no escuro" e abro os olhos.
Não o podia ver, talvez fosse este o monstro nas minhas costas. Ouvia-o mexer em objectos estaladiços e de repente acendeu-se uma chama. E da chama nasceu a luz. Olhei para ele.
Tinha o rosto afunilado de Peter Pan, os mesmos olhos rebeldes. Pensei: "A criança feita homem".
Disse-me: "Há outra forma de luz lá fora" e levou-me pela mão. Podia ser este o diabo a quem Fausto vendera a alma e outros venderam o corpo, mas encolhi os ombros despreocupada. Ofereço-lhe tudo isso de bom grado por ser dono da luz. Caminhamos lado a lado com a dignidade com que os amantes caminham para o altar. Estamos fora da caverna.
Não somos sombra do que éramos e a luz atravessa-nos ao meio. Ou seja, não temos sombra e trocamos de alma como quem troca de corpo. Somos livres.


Nota informativa: volto dia 18 de Setembro depois de uma viagem pela luz.