terça-feira, 19 de outubro de 2010

Imigrantes, intocáveis e imortais

Quando como lasanha fico com o estômago a levedar durante a tarde inteira. É um facto. O mesmo acontece quando falo sobre multiculturalismo. Fico tão enfastiada que tenho de beber um chá verde para digerir. Mesmo assim, como lasanha porque gosto de comer e falo sobre multiculturalismo porque vivo em Bruxelas, onde o multiculturalismo está sempre na ordem do dia. Trata-se de um tema extremamente cosmopolita e moderno. Ora, num discurso proferido este domingo, a Angela Merkel disse qualquer coisa como "o multiculturalismo falhou redondamente". Como se não bastasse, disse isto em alemão, uma língua medonha e nada cândida, ao contrário do português.
É óbvio que Angela Merkel já sabia que todos lhe cairiam em cima. Há que apreciar Angela Merkel, nem que seja, por isso. Há pouca gente temerária à frente da Europa, são todos demasiado cosmopolitas, demasiado modernos. É certo que, antes de dizer isto, a chanceler também disse outras coisas. Por exemplo, que os alemães aceitaram os Gastarbeiter nos anos 60 na expectativa de que eles se fossem embora passado pouco tempo. Que, constatando o contrário, os alemães resolveram acolher os imigrantes e adoptaram uma perspectiva multikulti, num espírito leviano e contente de coexistência.
Não percebo muito do assunto, porque não sou pessoa para perceber muito dos assuntos mas, como muita gente da minha geração, sou um bocadinho cosmopolita e também um bocadinho modernaça, de maneira que me apetece dizer algo sobre isto.
Só ouvi o discurso de Angela Merkel hoje e devo dizer que as suas palavras não me chocam absolutamente nada. Parece-me, aliás, que a chanceler disse o que outros já disseram ou, pelo menos, queriam ter dito. O multiculturalismo é, na Europa, uma tendência imperiosa como as calças de ganga. Qualquer europeu que se preze tem vários pares de calças de ganga e é multicultural, ou seja, vai ao cinema ver filmes turcos, vai jantar ao indiano e ao vietnamita, tira cursos de cozinha marroquina e fala várias línguas.
A meu favor, digo o seguinte: como kebabs com frequência, dividi o apartamento com uma turca e com uma alemã durante um ano, estou a aprender a quarta língua estrangeira, trabalhei em quatro países europeus, vou de fim-de-semana com amigas búlgaras e eslovenas, jogo vólei numa equipa flamenga e casei com um português porque cheguei à conclusão evidente de que essa era a melhor nacionalidade do mundo. Estou, portanto, integradíssima neste meio multicultural, não tenho nada contra o diálogo intercultural. Adoro multiculturalismo e calças de ganga, desde que não me roubem a identidade.
Admito, no entanto, o seguinte: o multiculturalismo é, como tudo o que é moda, uma verdadeira fachada. Há muito que a Europa enfrenta problemas relacionados com a imigração. Isto é tão verdade que até soa a lugar-comum, desculpem lá. A perspectiva multikulti de tudo-ao-molho-e-fé-em-Deus-desde-que-não-seja-assim-muita-muita-fé não resulta. A Europa foi demasiado branda com os que cá chegaram. Aceitou-os, mas não exigiu ser aceite. Era demasiado cosmopolita e moderna para isso. Chegou a hora de repensar o multiculturalismo.
E quem se choca quando a Angela Merkel diz que os alemães se sentem ligados aos valores cristãos, recomponha-se. Não acredito em Deus, mas acredito na História e é isto que ela nos diz.
Não concordo com as medidas de Sarkozy, não me parece que resolvam o problema. Mas também me parece que não podemos olhar para os imigrantes como se fossem intocáveis. É preciso mexer nos imigrantes, integrá-los nos países que os acolhem. Sobre isto, uma palavra: educação. Já se disse demasiado sobre isso, não vou repetir o que foi dito.
Claro que Angela Merkel não tem a vida facilitada na Europa. Não só por ser mulher, mas sobretudo por ser alemã e discursar em alemão. Já se sabe que o mundo inteiro morre de medo quando alguém diz o que quer que seja em alemão. Esta é, quanto a mim, uma reacção normal. Não quero falar de judeus. Por uma vez, que não se fale em judeus, mas o trauma da Segunda Guerra Mundial está para ficar. Os judeus que morreram são imortais. Mas eu não quero falar nos 6 milhões de judeus que morreram na Segunda Guerra Mundial, porque senão também teria de falar nos 10 milhões de chineses e nos 24 milhões de soviéticos e, mesmo assim, só estaríamos a falar de metade das pessoas que perderam a vida nessa guerra. Não quero falar sobre isso. Prefiro falar sobre o multiculturalismo. Ainda que fique um pouco enfastiada depois.
Nada como um chá verde para ajudar.