segunda-feira, 15 de maio de 2023

O lugar de origem



De vez em quando os meus filhos mais pequenos dizem-me que querem voltar para a minha barriga. Um deles vai mesmo ao ponto de enfiar a cabeça por baixo da minha blusa. Diz: “Eu quero entrar” e ali fica, cabeça enfiada na mãe.

A culpa há de ser minha, que estou sempre a falar-lhes desta sua terra natal. Conto-lhes que um estava à direita e o outro à esquerda, um virado para cima e o outro para baixo, que um andava sempre aos pontapés e o outro quase não se mexia. Eles conhecem bem a história e repetem-na vezes sem conta. “Quando eu era pequenino, eu estava na barriga da mamã” e depois riem-se, felizes com o seu lugar de origem. O mais velho também se interessa pelo assunto. Quer saber que tamanho tinha dentro da minha barriga. Se era assim, assim ou assim.

No outro dia li esta frase da Susana Moreira Marques: “Talvez todas as viagens - no país ou fora do país - sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.” É importante lembrarmo-nos do ponto de partida. Independentemente do destino, independentemente da travessia.

Eu venho da minha mãe. 

Sou muito parecida com ela e muito diferente também. A minha mãe ri-se muito alto (eu também), não adora cozinhar (eu também não) e vive bem sem literatura (já eu, morreria). Sempre me falou com franqueza, nunca me tratou com paninhos quentes (eu sou bem mais mole com os meus filhos). Dizia-me, por exemplo, que a maternidade era uma coisa terrível. Que os filhos davam cabo das mães e dos pais, que a vida deixava de nos pertencer, que o corpo se transformava para sempre. Poderá ter sido a única mulher que me falou a verdade sobre esta coisa de parir um ser humano. 

Como filha, sempre me angustiou ouvir estes desabafos. Como mãe, alivia-me bastante. Agora que estou deste lado, sinto-me ligada à minha mãe mais do que nunca. Nem o cordão umbilical nos terá ligado tanto uma à outra. Na verdade sinto-me ligada a absolutamente todas as mães - as de agora, as de antes e as que venham a ser -, como se os meus gestos fizessem parte de uma coreografia universal, como se eu falasse e atuasse em coro. Eu, a minha mãe, todas as mães no mundo inteiro, a embalar bebés em perfeita sintonia, a dar-lhes banho e raspanetes, a atirá-los ao ar, o musical das mães que correm atrás dos filhos. 

Somos todas feitas da mesma massa, da mesma dor. De alguma maneira seremos todos filhos de uma mesma mãe, seremos todas mães (e pais) dos mesmos filhos.

Esta visão do coletivo também se afinou com a maternidade. A ideia de que, salvo trágicas exceções que infelizmente não serão assim tão poucas, a maioria dos seres humanos teve, tem, terá sempre, uma mãe mais ou menos competente que lhe dá de comer, que lhe canta canções de embalar, que, de uma forma mais ou menos intensa, mais ou menos condicional, ama os seus filhos.

A senhora da farmácia dá-me conselhos sobre probióticos e eu imagino a sua mãe, pergunto-me se ainda estará viva, se lhe dava beijinhos (ou estalos) por tudo e por nada, se a deixava sair à noite, se a apoiava ou criticava ou humilhava. 

Pergunto-me o mesmo sobre as mães de todos os que apanham o 7 e sobre as mães dos condutores do elétrico, as mães dos sem-abrigo em frente ao Carrefour, as das miúdas tagarelas que passam por mim, as dos calmeirões que jogam futebol no parque, as do casal bonito na bicicleta, e as de todos os outros. 

As mães dos reclusos na prisão de Saint-Gilles, as dos soldados ucranianos, dos refugiados em barcos de borracha, dos turistas em Lisboa, dos oligarcas russos. Leio as notícias e imagino o Costa a chuchar no dedo, a rainha Camila a fazer uma birra, o Joe Biden a gatinhar nos corredores. Sabemos de onde vimos e também para onde vamos.

Hoje é dia da mãe na Bélgica e na maior parte do mundo, parece-me. Os meus filhos correm de um lado para o outro pela casa e eu ralho com eles, escondo a fita métrica antes que se magoem, faço um almoço que não me corre lá muito bem.

Saímos de casa depois de comer. Eles à frente, eu e o pai atrás. Vamos ao parque. Eles andam às voltinhas de bicicleta, eu e o pai conversamos. Quando passam por nós, fazemos um barulhinho de meta. Tim tim tim tim, dizemos em uníssono. Um deles vem sempre atrás, mais devagar. Os outros dois passam a grande velocidade. Um dos rápidos estatela-se no chão, magoa-se na boca. Choro e colo, seguidos de mais choro e mais colo. Em dado momento distrai-se do seu sofrimento. Duas borboletas passam por nós. Entrelaçam-se uma na outra, numa dança baixinha, possivelmente macho e fêmea, o bailado intemporal da vida.

Enquanto estamos no parque aparecem várias mães com os seus filhos. Algumas estão sozinhas. Uma mãe com um bebé de colo, uma mãe e um carrinho, uma mãe com duas filhas, uma mãe e um menino muito ativo. Também aparecem casais, sempre homem e mulher. E ainda pessoas com os seus cães.

Há uns dias uma ilustradora sugeriu no Instagram que as mães passassem o dia das mães juntas, sem os filhos. Pareceu-me uma boa ideia para mim e para todas aquelas mães. 

Os meus filhos jogam à bola com o pai e eu escrevo este textinho. Eles pedem-me água, batatas, bolachas, e eu fantasio com essa festa das mães sem os filhos. Uma festa para beber e dançar, mães do presente, do passado e do futuro a sambarem em cima das mesas, a rirem-se da prole. Às gargalhadas. 

Isso, sim. Apetece-me.

O mais velho oferece-me um desenho de flores e depois oferece-me flores de verdade, um ramo de rosas que comprou no supermercado com o pai. Duas das rosas já vêm partidas. Diz-me: “Hoje é o dia das mamãs e esse dia é bonito e tu és bonita.” Eu parto-me a rir. Ele diz, muito sério: “Eu não estou a brincar”. Os mais novos destroem mais duas rosas. Sobram meia dúzia. Um dos minorcas faz-me um bolo de areia, canta-me os parabéns. O outro vem para o meu colo, diz-me: “Eu sou um bebé”. Eu e o pai hesitamos com o fim de dia. Poderíamos jantar fora, mas talvez seja melhor voltarmos para casa. O meu marido faz uma massa perfeita com beringela e espargos. Amor da minha vida. Ele, eu e eles. A vida de repente muito fácil, feliz, deliciosa, bonita. E nada terrível.


Na tal festa das mamãs sem os filhos, eu e a minha mãe apareceríamos vestidas de igual (por insistência da minha mãe, talvez de macacão azul elétrico). Passaríamos a festa a dançar. Nos intervalos, beberíamos bastante e falaríamos muito mal dos nossos filhos. E olhem que eu não estou a brincar.