quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

E depois passaram-se treze anos

No outro dia fiz as contas: treze anos em Bruxelas. 
Tantos dias, tantas noites. 
Tudo o que aconteceu entretanto. 
As pessoas que chegaram. As pessoas que partiram. 
Éramos muitos, ficámos poucos. 
Art Nouveau. Art Deco. Arts-Loi. 
O sol fraco no inverno. A chuva forte no verão.
Eu perdida em Schuman. Eu a caminho de casa.
Aquela fase em que estava sempre a ouvir Andrew Bird. Aquele ataque de riso no teatro. Aquele ataque de riso numa reunião de trabalho.
Magritte. Marolles. Mexilhão.
A escadaria do Mont des Arts. As esplanadas de Saint Boniface. Os lagos de Ixelles.
Aquele piquenique. Aquela garrafa de tinto.
Eu a descer a rua. A escrever na varanda. A beber Leffe blonde.
A Flagey. O Belga. O festival de filmes de animação.
Eu e ele no Bois de la Cambre. No Bozar. No parque Tenbosch.
Aquele dia em que encontrei a Leila no mercado. O concerto da Lisa Hannigan. Aquela gripe de caixão à cova. 
A estação central. O aeroporto. O 81.
As noites de inverno com os meus filhos ao colo. Aquele dia interminável no Ikea. A cimeira das 24 horas. Aquela molha a caminho de casa.
Batata frita. Banda desenhada.
As noites no Archiduc. As manhãs no sofá.
O casamento da Ritinha e do Evgeniy.
Aquele dia de sol tão bonito que foi o dia dos atentados. Aquele espetanço de bicicleta. Aquela vez em que caí na neve.
A exposição do Chagall. O festival de banda desenhada. Aquela noite em que me roubaram a mala.
O primeiro concerto da Guerreira. A Edina a fazer stand up.
As aulas de francês. As aulas de neerlandês. Os cursos de escrita criativa.
O sofá da primeira casa. A escrivaninha da segunda casa. Os janelões da terceira casa. 
O meu casaco de inverno que é sempre o mesmo.
Esta cidade que é de todos e não é de ninguém. Eu cada vez mais estrangeira. Cada vez mais portuguesa. Cada vez mais europeia. 
Volto ao tal sofá da primeira casa. Escrevo no meu caderno: “Fevereiro de 2007”. É o meu primeiro caderno em Bruxelas. Um caderno lindo, forrado a tecido. O papel ligeiramente amarelo, completamente liso. 
Estou no sofá de 2020 e regresso a esse primeiro caderno. Encontro-o numa das estantes. Leio a primeira frase da primeira página:

“E depois havia o frio e o nevoeiro, mas nada disso era triste.”


Que coisa estranha, começar um caderno assim: “E depois”. Mas nessa época as frases podiam começar a meio. Nessa época nada era triste. 
Era a minha infância em Bruxelas. Uma infância feliz, cheia de ingenuidade e esperança. 
E depois passaram-se treze anos.
E depois eu perdi a infância. E depois entrei na adolescência. 
Tenho agora treze anos de Bruxelas. Estou mais crescida. Estou mais insegura. Estou sempre amuada.
E depois?
E depois nada.
Os cadernos mudaram. O tempo passou. E eu escrevo.