segunda-feira, 28 de julho de 2008

Botão do volume

O vizinho de baixo não consegue dormir por causa do vizinho de cima. Sai da cama, calça as pantufas, sai de casa, sobe as escadas. Toca a porta. Espera.
- Boa noite, vizinho. Olhe, desculpe, mas será que podia baixar a música?
- Baixar a música?!
- Sim.
- Como assim, baixar a música?!
- Olhe, baixando, não sei. Imagino que indo ao botão do volume e girando-o.
- Mas é a Maria Callas que está a cantar. Não se pode baixar a Maria Callas.
- Pois, mas é que já são dez e meia.
- São dez e meia?
- Sim, dez e meia.
- E então?
- E então queria dormir.
- Queria dormir às dez e meia?
- Sim.
- Comigo?!
- Não, consigo não.
- Então por que me veio bater à porta?
- Porque não consigo dormir.
- E que tenho eu a ver com isso?
- Tudo! Não consigo dormir por causa da sua música.
- Por causa da minha música?
- Sim, é que já são dez e meia.
- Não gosta da Maria Callas?
- Sim. Quer dizer, não é a minha cantora preferida.
- Não?!
- Não.
- Então quem é a sua cantora preferida?
- Bom, eu realmente não vim aqui para discutir música consigo.
- Não?!
- Não, é evidente que não.
- Mas é importante discutirmos música, se a minha música é um problema para si. Entre, entre.
- Não, não, não. Queria mesmo só que baixasse a música. Ou que a desligasse, talvez.
- A Maria Callas?
- Sim. A Maria Callas.
- Mas você julga que é quem?
- Sou o vizinho de baixo. E não consigo dormir com a Maria Callas.
- Não?!
- Não.
- Bom, que posso eu fazer? Quer uma coisa menos clássica, é isso? Mais jazz? Mais pop? Mais rock? Tenho aí de tudo, é só dizer, vizinho.
- Não. Eu realmente só preciso de silêncio.
- De silêncio?!
- Silêncio.
- Para dormir?!
- Sim.
- Às dez e meia?!
- Sim.
- E acha que vai conseguir?
- Normalmente consigo.
- Interessante.
- Talvez... Ficava então extremamente agradecido, se pudesse girar o tal botão.
- Olhe, eu, por exemplo, gosto de dormir ao som de Roberta Flack. Já experimentou?
- Não, não experimentei. Como lhe disse, gosto de dormir em silêncio.
- E quando estou triste ou irritado como o senhor, ouço Aimee Mann. Conhece?
- Sim, conheço.
- Ai sim?!
- Sim.
- E gosta?
- Mais ou menos, sim.
- E gosto de acordar ao som de Aretha Franklin. Já experimentou?
- Não, não experimentei. E realmente não estou interessado, sabe?
- Não gosta da Aretha Franklin?
- Bom, não é que não goste. Mas também não morro de amores.
- Não morre de amores?!
- Não.
- Olhe, desculpe, mas eu realmente não consigo falar com pessoas que não morram de amores pela Aretha Franklin. Com licença.
E fecha a porta. Desliga a Maria Callas de repente e o vizinho de baixo suspira.
Regressa a casa. Enquanto abre a porta, abana a cabeça. Mete-se na cama. Nisto entra-lhe pela casa dentro Aimee Mann.
One. Um. O algarismo. Cardinal.
Uma música tão triste, que o vizinho de baixo não teve forças para voltar a sair da cama.
Adormeceram os dois de exaustão.