"Está a chover" é um dos 6 livros selecionados pela Time Out.
Texto completo aqui:
https://www.timeout.pt/lisboa/pt/miudos/livros-infantis-fresquinhos
"Está a chover" é um dos 6 livros selecionados pela Time Out.
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Yáááa! 5.a edição!
A karateca está de volta. O meu absolute best-seller.
Ali estou eu, rapariga karateca, e ali estão os meus cadernos, os meus sonhos, as minhas angústias e as minhas perguntas sobre o amor, o futuro e a verdade. Ali estão também os meus pais, os meus professores, o meu irmão, os amigos, os primos, os tios, os avós.
É o meu primeiro livro, o mais ingénuo, o mais Ana.
Quando acabei de o escrever, não percebi se tinha realmente acabado de o escrever. Não percebi se aquilo era um livro ou a continuação dos meus cadernos.
Com ele ganhei o Prémio Branquinho da Fonseca. Soube da notícia num dia de chuva, depois de uma consulta de ortopedia por causa de uma lesão antiga no joelho, decorrente do Karaté. Lembro-me de entrar no táxi com as minhas canadianas, de rogar pragas à chuva e ao meu joelho, de pensar “Por que raio fiz Karaté? Por que raio não fiz antes natação ou ioga?” Nem sequer era grande karateca, nunca quis participar em campeonatos, não gostava muito de me ver com o kimono de Karaté.
No dia do lançamento do livro, estava tão nervosa que não conseguia segurar no copo de água pousado à minha frente.
Uma vez perguntaram-me que livro eu escolheria salvar, se só pudesse salvar um dos meus livros. Respondi sem hesitar que salvaria a karateca.
Foi ela que me levou ao Planeta Tangerina, onde tenho sido tão feliz na tagarelice, na labuta e na partilha com a Isabel Minhós Martins, o Bernardo P. Carvalho, a Madalena Matoso, a Yara Kono, o João Gomes de Abreu, a Joana Estrela, a Cristina Lopes, a Carolina Cordeiro, a Mariana Vale e todos os demais habitantes desse astro.
“Eu não sou menina. Nem romântica.”
É que não sou mesmo.
Topa-se, né?
No final de fevereiro, enquanto a Rússia invadia a Ucrânia, eu lia um livro de 300 páginas sobre desfralde. As almas menos sensíveis poderão acusar-me de ser uma mãe desfasada das tendências do mundo, mas qualquer observador mais atento perceberá certamente que, às portas da guerra, uma mãe deve preparar os filhos para o autocontrolo e a dignidade, começando desde logo pelo domínio das fezes.
Em tempos de guerra, será ainda mais urgente, mais económico, mais ecológico, mais seguro e mais saudável os mais pequenos aprenderem a evacuar adequadamente.
E portanto, é como vos digo: a Rússia invadiu a Ucrânia - tanques, aeronaves, mísseis, vítimas mortais, refugiados - e eu lancei os meus filhos para esse estranho encontro com o seu próprio corpo. Ali estão eles, expostos, desarmados, como vieram ao mundo. Observam-me confusos talvez, ainda mais sós, ainda mais gémeos, ainda mais nus e indefesos.
É preciso olhar para a existência humana através dos seus olhos. Na perspetiva dos meus filhos, largar as fraldas é como ir para o Espaço, como ir para a guerra, tudo é novo e assustador a partir do momento em que andam nus pela casa, à mercê da sua vontade urinária e fecal.
No tal livro de 300 páginas sobre este assunto, a autora americana, perita em desfralde, lembra-me que esta aprendizagem só vai ser prioritária para os meus filhos se ela for prioritária para mim. Ao longo da próxima semana, diz-me ela, não pensarei em mais nada além deste confronto com o bacio. Aceito o desafio e vou para a guerra.
Passam-se dois ou três dias em que as fezes raramente vão parar ao penico. Limpamos o chão demasiadas vezes. Muito chichi, muito cocó, muitos escombros, muita frustração para os pais, para a ama e para os dois pequenos soldados.
Recordo os ensinamentos da perita americana: importa não perder a paciência e não entrar em contendas de poder. Firmeza, mas não dureza. Esta é, afinal de contas, a primeira vez que uma criança aprende a dominar o corpo. Convém que a experiência, apesar de exigir concentração e esforço, dê um resultado positivo.
Aprendemos por repetição, por mimese, por insistência e persistência. Se tudo correr bem, daqui a poucos dias a criança vai conseguir interpretar os impulsos musculares da bexiga e dos intestinos, e tomar a iniciativa de se sentar no penico. Essa será a sua primeira experiência de sucesso. E muito em breve será precisamente a mestria do penico que estará na base da sua auto-estima na sua relação com o seu corpo.
Penso em Vladimir Putin. Pergunto-me se tudo poderá ter corrido mal desde esta travessia de autoconhecimento, se Putin terá largado as fraldas num ambiente de segurança, se terá sido amado, abusado ou humilhado durante esta aprendizagem. Se um opressor pode começar aqui mesmo, numa criança oprimida sentada num penico.
Penso em todos os soldados atirados para a guerra, os russos, os ucranianos e os demais que se lhes juntaram, todos eles filhos de mães que lhes ensinaram a utilizar o bacio, a bem da sua autonomia e do seu bem-estar. Aqui estamos todos, pais e filhos, opressores e oprimidos, e basta uma criança sentada num penico para percebermos que o nosso caminho poderia ter sido tão diferente, a mãe a bater palmas, emocionada com a conquista do filho.
Um dos meus rapazes chora porque fez chichi nas calças. Vacilo entre a frustração e o amor. Ralho e refilo, cansada e, ao mesmo tempo, receosa de que ele venha um dia a perder o ânimo por minha causa, de que venha a invadir um país.
Se eles falharem, a culpa será sempre minha, claro, que ralhei com eles no momento em que precisavam de um abraço. Penso em Vladimir Putin e imagino-o assim, aos dois anos e meio, vulnerável, as calças molhadas com a sua própria urina e não posso deixar de sentir o peso da minha responsabilidade.
Já sei que a tendência agora é não pressionar, é nunca dar um feedback negativo, é não fazer desfralde sequer, é esperar que as crianças decidam sozinhas que querem aderir às normas sanitárias de evacuação. De facto nada é mais pessoal e visceral do que as nossas próprias tripas.
Por outro lado, nada é mais ideológico do que educar, ensinar, formar. Estado e indivíduo parecem estar incompatibilizados. No que toca aos mais pequenos, a escola espera que as crianças saibam evacuar aos 3 anos, que aprendam a ler aos 6, que aprendam inglês aos 10, que entrem na universidade aos 18. A vida não está fácil para os que querem esperar até estarem preparados.
Parto, pois, do princípio de que nunca ninguém está preparado para nada e nunca ninguém ficará à espera de que estejamos finalmente à altura do que quer que seja. Tudo será sempre imprevisível e excessivo e vai exigir esforço, adaptação, diálogo e aprendizagem.
Isto aplica-se à maternidade, à escola, à geopolítica, às operações militares, à cerimónia dos Óscares e também à arte de urinar e defecar.
Ao contrário da minha mãe e do meu avô Manuel, nunca fui grande jogadora de cartas. Mas sempre tive um fascínio por baralhos de cartas.
Copas, espadas, ouros, paus.
Aquela coisa de as cartas nunca ficarem de cabeça para baixo: reis e damas com duas cabeças. O valor indiscutível do trunfo, que daria tanto jeito na vida.
Esta frase extraordinária: “Toma e vai buscar.”
Passei muitas horas da vida a jogar Uno com os meus pais. Passei algum tempo da minha infância a fazer paciências. Nunca aprendi um único truque de cartas. Nunca aprendi a baralhar como deve ser. Nunca sei as regras do jogo.
Como jogar às cartas quando não se sabe jogar às cartas? Será que podemos jogar sem regras? Será que as podemos inventar?
Diverti-me à grande a escrever esta história do gnu e do texugo, que não percebem patavina de cartas, mas gostam de jogar na mesma. A Madalena Matoso, esse incrível ás de copas, fez do texto um livro muito fora do baralho, que me faz rir a cada página.
Espero que o encontrem por aí e que gostem dele.
Clip, clap, clup.
Tudo sobre ele: https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/o-gnu-e-o-texugo-esta-a-chover/
Nasceu em 1936. Morreu ontem.
Não fumava, não bebia café, raramente bebia álcool. O seu único vício era a pintura.
Desenhar, pintar, sentir, voar.
Quantos pássaros terá desenhado? Centenas. Milhares.
Nos murais, nos vitrais, nos cadernos, nas telas. Incontáveis pássaros em pleno voo.
“A natureza cuida”, dizia ele, mas não estava a falar das plantas, nem sequer dos pássaros que nascem e voam, estava a falar da arte, de tudo o que fazemos com as mãos, com a alma, com os olhos.
Falava de arte como quem fala da vida, o mistério das coisas invisíveis que ganham raízes e brotam, crescem, dão frutos.
Leu tudo o que escrevi. Lia, relia, comentava, empolgava-se. Queria saber se já estava a escrever alguma coisa nova. Sim, dizia-lhe eu, estava a escrever uma novela gráfica, um poema, um conto. Ele ria-se, cúmplice do meu vício.
Disse-me algumas vezes que eu era parecida com a sua mãe. Dizia-o sem hesitação, como se estivesse a dizer a verdade. Talvez por sermos mães de rapazes. Talvez por sermos mães de meninos Bandarra.
Olho para os meus meninos Bandarra. O mais velho constrói uma pista de comboios, o mais pequeno toca piano, o do meio salta do sofá para o chão. Quantos pássaros não desenharam com o avô? Quantas conversas não tiveram?
Era muito chato ir com o meu sogro ao centro de Aveiro. Toda a gente o conhecia, toda a gente o acarinhava. Parávamos em todas as esquinas para cumprimentar alguém. Podia acontecer que não chegássemos ao nosso destino. Ficávamos a meio do caminho. Não era grave. Voltávamos para trás.
Entre ir e vir conversávamos. Falava-nos da sua infância nos anos 40. Os quatro Bandarras, sempre à solta, inventivos, aventureiros. Saíam porta fora, corriam, mergulhavam, jogavam com uma bola de trapos. Voltavam tarde, com fome.
A mãe, sempre a mãe, que se preocupava com eles, que os alimentava, que recortava coelhinhos num pedaço de papel. Os chocolates que o pai lhes oferecia no dia de Natal. Um chocolate a cada um, enfiado numa meia, a felicidade pura.
A sua juventude só e melancólica. Os três irmãos fora e ele ali, numa cidade parada. “Não havia nada disto. Era só campos”.
As leituras que lhe fizeram companhia. Os romances de Émile Zola. A religião, o misticismo. Os quadros do Picasso. Os versos que escrevia. O teatro aveirense. A Margarida “muito alegre, muito alegre, muito alegre”, dizia ele, luz da sua vida, com quem viria a casar. Os pais doentes, os filhos pequenos, o emprego estável na Portucel, a pintura, sempre a pintura, seu único e terrível vício, “uma doença”, dizia.
Viajámos juntos. Bruxelas, Paris, Londres, Lisboa, Gerês, Tavira. Vimos exposições. Quantas exposições? Chagall, Picasso, Matisse. Pompidou, Tate Modern, Bozar. Sabia tudo sobre os cubistas, os surrealistas. Parava em frente a uma tela, as mãos atrás das costas. Falava-nos da importância do branco num quadro, do foco de luz.
Saíamos para a rua em êxtase, cheios de arte e de vida. Comentávamos os quadros do Lucien Freud, fortes, reais, permanentes, como se estivessem vivos.
E agora, onde vamos? Alguém perguntava. O Jeremias dizia: “Quero ver pessoas”, e lá íamos vê-las nas suas vidas, nos seus afazeres. Em Oxford Street, nos Campos Elísios, na Grand Place.
Sentávamo-nos numa esplanada. Pedia uma cerveja sem álcool. E então aí, sentado num café em Antuérpia ou numa rocha no Gerês, a lanchar no Perroquet, a jantar na sua casa, dizia: “Isto já ninguém nos tira!” Isto: a esplanada, o pôr do sol, a família, a cerveja, a arte nova, os quadros do Picasso, as pessoas na rua, tudo o que vimos, pensámos e sentimos até então, o delírio da arte e da vida. Bebia um gole entusiasmado da sua cerveja sem álcool, os olhos aguados. Acrescentava: “Até aqui chegámos nós”. Assim era.
Sempre a consciência da finitude. A ideia de que não estaremos aqui para sempre. De que qualquer coisa nos liga uns aos outros, de que há uma verdade acima de nós, acima de tudo, de que nada começa e acaba verdadeiramente, de que todos somos permanência, continuação, universo, natureza, vida, focos de luz.
A beleza das horas que passam, das pessoas que passam, o presente que era futuro e se transforma em passado. Tudo o que vimos, pensámos, sentimos. Todos os rios, todas as serras. Todos os quadros.
Todos os voos de todos os pássaros.
Granda malha!
Por iniciativa do Plano Nacional de Leitura e a pretexto do Dia Mundial da Leitura em Voz Alta, a Mary John subiu hoje ao palco às cavalitas de alunos mui corajosos do Agrupamento de Escolas da Sertã.
O espetáculo “Jogo de cartas” incluiu a leitura de várias cartas, poemas e muitos excertos da Mary John. Partilho aqui algumas fotos dos ensaios e do espetáculo.
Uma produção da Andante Associação Artística que contou com o apoio da Câmara Municipal da Sertã.
Bolas! Vou rodopiar em voz alta. Quem me dera ter lá estado!
A Joan Didion morreu na véspera da véspera de Natal. O João Paulo Cotrim morreu três dias depois. Não conheci a Joan nem o João, mas senti um pasmo cardíaco quando soube da morte de ambos.
Há uns meses apareceu um caracol numa alface cá em casa. Era um caracol muito pequenino. Fui mostrá-lo às crianças. O mais velho matou-o sem querer.
Reli a Mrs Dalloway e reli também As Horas. Aproveitei para rever também o filme. Fui então um pouco mais longe, e já agora, li o guião de cinema. Foi um exercício intrincado porque uma mulher real é personagem num livro onde uma outra personagem lê o livro que a mulher real escreveu.
As Horas começam com a famosa carta que Virginia Woolf escreveu ao marido no dia em que se suicidou. A carta acaba assim: “Não acredito que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos”.
Não foi um ano lá muito feliz. Chorei algumas vezes. Não me ri muito. Mas por acaso no outro dia tive um ataque de riso que me tirou o fôlego.
Aconteceram coisas estranhas.
A invasão do Capitólio. Aquele navio encalhado algures no Egito. O voo da Ryan Air desviado para a Bielorrússia. Aquela louca que me seguiu até casa. As cheias na Alemanha e na Bélgica. A quantidade de roupa que já não me serve. A quantidade de pessoas que se foi embora de Bruxelas. Grandes amigos do peito. Os vizinhos do lado. O menino da creche. Um amigo do mais velho.
Puxa. Parem lá de zarpar.
Perdi muito cabelo. Perdi umas luvas pretas. Fui multada por excesso de velocidade. Aprendi a letra de algumas canções tradicionais. A minha favorita é aquela assim: “Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu”.
Demos muita coisa das crianças. Uma banheira, um carrinho, dois berços, muita roupa. Passamos férias em Portugal. Passamos duas noites no hospital.
Nevou em fevereiro. Nevou em abril. Nevou em novembro. Nevou em dezembro. Ainda não tenho um bom calçado para a neve.
Nasceu a Lua. A Salomé. A Sara.
Cortei um dedo a abrir uma lata de feijão. Cortei um dedo a abrir uma lata de atum. Cortei um dedo a ralar couve-flor. Foi sempre o mesmo dedo.
Senti-me muitas vezes exausta. Senti-me muitas vezes sozinha.
Ainda assim, tentei fazer o que esperavam de mim. Tomei as vitaminas. Tomei a vacina. Cortei o cabelo. Lavei os dentes. Separei o lixo. Comprei finalmente um desodorizante. Montei a árvore de Natal.
O mais velho pede-me beijinhos. Os mais pequenos dão-me grandes abraços. Ainda me acontece olhar para o meu marido e sentir um sobressalto. É do caneco.
Em 2022 espero que o bicho amaine e que nos deixe rir um bocado. Rir mesmo. À toa. Às gargalhadas. Sem medo. Sem pudor. Sem máscara.
Esta vida anda tão séria. Arre.
Bom ano, malta!