quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A narradora entrevada

A narradora entrevada foi ao osteopata. Gabinete amplo, secretária ao fundo, uma cadeira importante que afinal eram duas, maca a meio caminho com uma toalha deitada, jardim empoleirado na janela, homem robusto. Um aperto de mão, patas de osteopata.
O senhor disse: Deite-se e a narradora deitou-se.
As patinhas dedilharam as costas da narradora entrevada.
Primeira vértebra. Ao longe, toalhas enroladas numa prateleira.
Segunda vértebra. Um armário ali à frente, enorme, que estranho.
Terceira vértebra. Não há um único cartaz com ossos neste gabinete. Só um quadro assim-assim. Quarta vértebra. A vida seria diferente se não fossemos vertebrados.
As patas do osteopata dedilhavam contentes. Eram patas boas e justiceiras, e as vértebras da narradora eram más, mereciam ser castigadas.
O osteopata disse: Deixe-se ir e a narradora deixou-se ir.
Um braço para ali, o outro para acolá e, de súbito, a narradora estalou.
Estalou mesmo, eu ouvi. PUM!
A narradora desbloqueada endireitou as costas e saiu destravada para a rua.
A meio caminho abrandou o passo. Trazia uma desconfiança qualquer dentro do crânio.
Alguém se ria nas suas costas. Sim, alguém se ria. Ouvia-se bem. HAHAHA!
Eu também ouvia.
E não eram as pessoas que passavam. Não eram as patas do osteopata.
Eram as vértebras da narradora. Escondidas atrás das costas.
Eram vértebras más e velhacas.
A narradora caminhou direita, mas não segura.
Nada podia contra si própria. Mas às vezes não gostava nada dos seus bloqueios.
Nem da sua coluna vertebral.