terça-feira, 23 de junho de 2009

A Forma e o Conteúdo

A Forma e o Conteúdo apanhavam juntos o autocarro para a escola e sentavam-se ao lado um do outro. Quando a Forma não ia à escola, o Conteúdo ficava triste. O mesmo se passava com a Forma, quando lhe faltava o Conteúdo. Davam-se bem.
Ora, um dia, estavam a Forma e o Conteúdo a ouvir uma música da Lisa Hannigan em casa da Forma, quando o Conteúdo disse à Forma:
- Amo-te.
A reacção da Forma foi estranha: agarrou no comando e desligou a aparelhagem de música. Depois voltou a ligá-la. Demorou-se com o comando porque queria pôr a mesma canção. A Lisa Hannigan regressou àquele espaço. E a Forma rebolou na direcção oposta ao Conteúdo.
Ele não se importou: gostava de ver a Forma rebolar.
O Conteúdo era profundo no sentimento. A Forma era mais pragmática, imaginava um beijo e não uma palavra. Coerente consigo própria, não disse nada.
O Conteúdo também não, embora por outros motivos. Tinha a consistência de uma nuvem: quando se mexia, os seus movimentos nasciam desagregados. A Forma pensava que, se o abraçasse, o Conteúdo ganharia mais consistência. Este pensamento agradava-a, por isso aumentou o volume da aparelhagem.
A certa altura, cerca de quatro minutos depois, a canção chegou ao fim.
Acabava-se o pretexto, portanto despediram-se.
O Conteúdo pôs a mochila às costas e foi-se embora.
A Forma encheu o peito de ar, por isso ficou um pouco maior do que antes.
O Conteúdo tropeçava nas próprias pernas descendo a rua. A vontade de andar era maior do que o corpo. O Conteúdo pensou que, se fosse uma ave, tudo seria mais fácil. Depois pensou noutra coisa, designadamente que o amor era difuso, confuso, complicado.
E assim era.
Assim seria.
Mas não para sempre. Só o tempo suficiente.
Para o amor ganhar forma. Nada mais.