terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Das pessoas que escarram

Certas pessoas escarram. Não espirram, não cospem, não tossem: escarram. Vejamos o seguinte: eu não tenho nada contra o muco. Não tenho. Sinceramente, do fundo de mim mesma (onde tudo é muco), não tenho. Na verdade, simpatizo com o muco, com a sua elasticidade, plasticidade, consistência. Gosto verdadeiramente de muco, adoro muco, só quero muco, mas é exactamente por isso que o guardo só para mim (de preferência por dentro) e não ando a escarafunchar o corpo para expelir certos dejectos não identificados.
Aliás, como muito bem sabemos, o muco é uma coisa boa, faz bem ao corpo e à alma, protege-nos de certas forças do Mal, é confortável por dentro e por fora, faz parte do que somos. Logo, não há razão para não gostarmos dele.
Portanto, quando sigo contente pelo meu caminho e vejo alguém a escarrar violentamente para o chão, coloco imediatamente as seguintes hipóteses: esta pessoa, que expele tão convictamente o muco que tão bem a protege, ou não tem amor ao corpo ou tem muco para dar e vender.
Sobre a primeira hipótese, digo o seguinte: Não acredito. As pessoas que escarram têm certamente amor ao corpo. Encontro-as constantemente na rua e vejo que são, por norma, pessoas com um certo à vontade na vida e no corpo: dominam os ossos, a carne, os passeios, o alcatrão, cumprimentam os vizinhos, compram jornais no quiosque. Por isso, não acredito. Como é conhecido, quem não tem amor ao corpo, é triste, anda trancado na alma, não gosta do início de si próprio, é depressivo. E, de acordo com o que tenho visto, quem escarra, anda contente ou, pelo menos, satisfeito. Escarra, como já disse, convictamente.
Inclino-me, portanto, para a segunda hipótese: As pessoas que escarram têm muco a mais. Isto, realmente, deve ser uma chatice, há que soltar o bicho. A ciência tem demonstrado que o excesso de muco é causado por doenças, nomeadamente infecções, inflamações ou maleitas do género. Logo, se as pessoas que escarram tiverem verdadeiramente muco a mais no corpo, tenho de admitir o seguinte: além de me meterem nojo (um enorme nojo, todo o nojo), metem-me medo (imenso medo), porque estão infectadas ou inflamadas ou coisa que o valha. E eu, instintivamente, afasto-me delas, não vá a peste pegar-se.
No entanto, com base numa observação mais cuidada do acto de escarrar, noto que os verdadeiros escarradores escarram sempre, a toda a hora, onde quer que estejam. Saem de casa e escarram, esperam pelo eléctrico e escarram, saem do eléctrico e escarram, viram a esquina e escarram, entram na padaria e escarram. Ora, uma pessoa não pode estar doente toda a vida, a não ser os verdadeiramente fracos ou verdadeiramente depressivos que, como vimos, não é o caso das pessoas que escarram. Coloco, pois, mais uma hipótese: certas pessoas escarram por vício.
Outros há que fumam por vício. Que bebem. Que assobiam. Que mascam. Que comem. Que cantam. Que escrevem. Que lêem. Que roem as unhas por vício. E certas pessoas escarram. (Entram pelo corpo adentro através das vias respiratórias e trazem ao mundo todo o muco que encontram.) Os outros vícios, comparados com este, parecem-me consideravelmente mais normais. Mais ligeiros. Mais admissíveis.
Por instinto e convicção, não me dou com pessoas que escarram, não gosto delas, não as suporto, não as aceito. Ou seja, discrimino-as.
Pura e simplesmente.