segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Dores de crescimento

Chorava convulsivamente porque tinha feridas no corpo e nódoas sempre negras. (Esclareça-se: ninguém lhe fizera mal.) Na verdade todos a tratavam demasiado bem e nem mesmo em criança ela caía ao chão. O pai dizia que tal se devia ao facto de a pequena andar sempre ao colo da mãe; a mãe dizia que não, que a pequena tinha um equilíbrio de rã, as pernas muito assertivas e os pés muito estáveis.
A adolescente dançava ballet desde cedo e só tinha fatos que lhe cobrissem as costas por causa das manchas horríveis de alergias inventadas. Quando lhe apareceu o primeiro pêlo negro na púbis, chorou horrorizada em frente ao espelho e arrancou-o com uma pinça. Tal era a sua obsessão que, ao lhe perguntarem o que queria ser quando fosse grande, em vez de bailarina, a menina respondeu "perfeita".
Certa vez diagnosticaram-lhe uma arritmia no coração e ela achou que o seu corpo já não tinha música. Não queria ir ao ballet e logo a seguir deixou de dançar. Depois, por as borbulhas lhe cobrirem o rosto e as ancas terem inchado, declarou que não iria mais à escola.
A mãe desesperou e levou-a a uma psicóloga com dentes amarelos. A adolescente mal falava e não ouvia, não gostava de ler nem de pintar nem de escrever e, agora, nem mesmo de dançar. Por isso, a psicóloga ofereceu-lhe um bilhete para uma exposição dizendo: "Aqui está a tua cura!". A rapariga queria curar-se da sua falta de perfeição, por isso, nesse dia e em segredo, foi ao centro cultural.
Nas paredes havia quadros da Frida Kahlo e a adolescente, ao ver as feridas de Frida, calou as suas. Viu os auto-retratos e auto-reflectiu. Havia pregos no corpo, uma coluna vertebral de ferro, camas de hospital. A rapariga saiu da exposição muito calada, comprou um poster do quadro "A Coluna Quebrada", afixou-o no quarto e não contou a ninguém o que vira.
Nessa noite a rapariga sonhou com o corpo enrolado em gesso, tão igual ao dos egípcios depois da morte: queria gritar e a sua boca mumificada era muda, queria fugir e os seus pés de anfíbio desequilibravam-se, caíam, nunca se levantavam. Ao acordar libertou-se dos lençóis e da roupa como quem sacode insectos, abanou o corpo e assim ficou muito tempo, completamente nua e sentada no chão.
De repente, assaltou-a um pensamento. Repetiu: "As feridas definem-nos!". Ouviu por dentro o coração sem ritmo e entendeu-o.
A adolescente concluiu: "Preciso de auto-retratar-me!" e ficou nua todo o dia, à excepção dos sapatos de ballet que entretanto calçara. Dançou sem música: deu saltos impossíveis e pousava certeira no chão, estava quase sempre em pontas, cheia de pontaria. Ao desequilibrar-se a primeira vez riu-se: era preciso conhecer os limites. Por isso, no dia seguinte, quando a psicóloga perguntou como se sentia, só a adolescente percebeu o que disse:
"Mal posso esperar por cair!".