sexta-feira, 28 de novembro de 2025

8 anos

 


Saímos do dentista. Quase escuro, quase frio. Ele põe o gorro. “Não tenho frio, mas gosto do gorro”. Diz-me que não quer voltar já para casa. Ai não? “O que eu gostava mesmo era de ir a uma livraria.” Resisto à tentação. Digo-lhe que não lhe vou comprar mais livros. 


Atravessamos a rua, entramos na boca do metro. E ele: “Estás sempre a dizer que não.”As escadas rolantes a mandarem-nos para baixo e ele a olhar para cima. “Está ali um avião.” E também: “Já não via um avião há muito tempo porque o céu está sempre fechado.” Retomo a discussão. Digo-lhe que podemos ir à biblioteca, onde ele pode requisitar oito livros de uma vez. Ele nem me deixa acabar. Rejeita a ideia com a cabeça e com as mãos. Diz que os livros da biblioteca não valem um chavo, que a biblioteca cheira mal, que a biblioteca é feia e que só serve para devolver livros e que ele não quer devolver mais livros à biblioteca, que é só devolver, devolver e devolver. 


Estamos debaixo da terra. Ele passa o cartão dele, as portas abrem-se. A vida continua. Diz-me que quer comprar um livro com o seu dinheiro então. “Para ser meu para sempre”. Eu percebo-o e digo-lhe precisamente isso, que o percebo. Ele barafusta. Algo do género: percebes, mas não deixas. Estamos na encruzilhada. Se formos para a esquerda, voltamos para casa. Os olhos dele: grandes, cintilantes, lindos. “Por favor, podemos ir a uma livraria?” 


Viramos então à direita, descemos mais um lance de escadas. Há lá coisa melhor do que ir a uma livraria com este meu filho. Entusiasmo-me com o nosso plano. Digo-lhe que vamos à nova livraria da Filigranes, que a livraria é enorme, cintilante, linda, que ele vai adorar. Ele diz “Uau” e ri-se. Eu rio-me também.


Apanhamos o metro, saímos duas paragens depois. Ele pede-me um gauffre. Digo-lhe que não pode comer doces depois do dentista. Ele insiste. Lembro-o da nossa missão. Digo-lhe que a livraria fecha às 18:30. Ele pergunta-me que horas são. Digo-lhe: 17:48. Ele escancara os olhos: “Temos pouco tempo.”


Entramos na livraria de rompante, vamos diretos para o andar de cima, ele sobe as escadas a correr. Ficamos que tempos na secção “Jeunesse”. Pede-me para eu não me afastar. Não é que ele tenha medo de se perder. Também não tem medo que eu me perca. Quer só que eu veja os livros que ele está a ver. Eu fico e vejo o que ele vê. 


Enquanto folheia um livro da Adèle: “Eles não têm mangás aqui?” A secção das mangás está mesmo ao nosso lado, mas eu não lhe digo. Respondo: “Devem ter.” Ele olha em volta mas não vê o que eu vejo. Encaminho-o para a secção que ele procura. “Vamos espreitar ali.” Ele encontra a sua estante: kodomo, mangás para crianças. “Olha, são todos os livros de que eu gosto.” Hesita entre o Super Mário e o Doraemon. Escolhe um, depois escolhe o outro. Lê umas páginas de um e umas páginas do outro. Quando avista a série Minecraft, desiste dos outros dois. “Afinal quero levar três livros.” Pergunto-lhe se tem dinheiro para isso. Ele faz contas. Leva três livros da Minecraft. Na fila para a caixa constata que não vou comprar nenhum livro para mim. “Oh, que pena, mamã!” Eu digo-lhe que tenho muitos livros para ler. “Então tens sorte!” Sim, tenho.


A caminho do autocarro, vai admirando as três capas. Diz que gastou muito dinheiro nos livros, que preferia ter os livros e também o dinheiro. Eu digo que ele só pode ficar com o dinheiro se devolver os livros. Sugiro voltarmos para trás. Ele cede, mas logo a seguir revela que está a brincar. “Nem pensar.” Leu o primeiro livro no próprio dia, leu o segundo no fim de semana, acabou o terceiro ontem ou anteontem. Agora quer o quarto volume. Digo-lhe que a biblioteca deve ter. “Eu não quero o livro dos outros.”


Faz hoje oito anos. Vai receber piões e livros da mãe, do pai, dos tios, dos amigos, dos avós. 


Os irmãos chegam a casa com livros da biblioteca. Ele agarra logo nos livros, senta-se a ler uma das aventuras do Yakari. Digo-lhe que não faz sentido ele não ir à biblioteca. “Se gostas tanto de livros, tens de ir à biblioteca.” Ele não interrompe a leitura. Diz que não gosta da biblioteca precisamente por gostar de livros. Quero continuar aquela troca de ideias, mas ele diz que está ocupado a ler.


Acordaram tarde de manhã. Espetei uma vela num gauffre, cantamos os parabéns pouco antes das 8h, saímos de casa a correr.


Fiquei a vê-lo a entrar na escola. O cabelo despenteado, a mochila às costas, o bolo mármore na mão. Meu rico filho. 


Já tem cáries. Já tem vícios. Já tem opiniões. 


Um dia há de perceber que nem tudo é um produto, que nem tudo o que é valioso está à venda, que as livrarias são a montra de um mercado e não de tudo o que existe, que as bibliotecas são de quem aprecia o conhecimento.


Só espero que nessa altura não seja tarde demais. Que nunca lhe falte a vontade de ler. 


Que não nos faltem as bibliotecas. Nem as livrarias, já agora.