saí de portugal há exatamente vinte anos
não atravessei o mar não passei por arame farpado não fui ilegal irregular clandestina requerente de asilo não fugi de nada nem de ninguém durante anos nem sequer percebi que estava a emigrar foi no tempo em que eu falava alemão e queria conhecer a alemanha beber vinho quente encher o bandulho de lebkuchen e então no dia 4 de novembro de 2004 se a memória não me engana apanhei um avião e cheguei ao meu destino onde passei algum frio os telhados eram negros e a floresta muito verde assim que pude comprei o passe de comboio e uma máquina fotográfica da kodak que tinha um zoom extremamente sôfrego viajei por todo o lado com ela ao pescoço berlim hamburgo colónia estugarda eu fotografava o rio a neve as praças e às vezes também era fotografada a fotografar como nesta fotografia em que eu sorria porque nessa época eu sorria bastante vivia nas águas-furtadas de um prédio de esquina a chuva batia com toda a força na janela e eu escrevia coisas extremamente más péssimas terríveis mas sorria na mesma a angela merkel ainda não era chanceler isso aliás era inconcebível em 2004 a angela merkel não tinha o carisma a robustez a pujança era até meio desengonçada vinha de leste não sabia comunicar ela nunca poderia substituir o schröder diziam eles e dizia eu também naquelas conversas de café os professores na escola tratavam-me por frau pessoa o que era bastante cómico eu era demasiado nova para estar na sala de professores era demasiado velha para estar entre os alunos e não sabia que no ano seguinte me iam roubar a kodak em paris e que angela merkel seria a primeira mulher a governar a alemanha e que o faria aliás durante mais de quinze anos amanhã há eleições nos estados unidos da américa e duas décadas depois dizemos de kamala harris o mesmo que dizíamos da merkel ela bem pode ter sido advogada senadora procuradora-geral mas não tem o carisma a robustez a pujança de um líder ou seja de um homem que parvoíce daqui a vinte anos ainda estaremos a falar disto porque a maior parte das coisas só as percebemos ao longe quando saímos de onde estamos e olhamos para outro país para uma língua para um determinado momento na história no mundo na vida como quem olha para uma fotografia ou seja quando estamos demasiado longe e quando o futuro que aguardávamos com vontade e esperança já ficou lá para trás e isso de repente duas décadas depois não nos dá vontade nenhuma de rir