sexta-feira, 2 de março de 2018

O mundo real e o mundo eletrónico

Não compro livros desde o Natal. E ofereci tudo o que comprei. 
Por acaso não é bem verdade. Adquiri uma coletânea de contos no Kindle através de um clique, mas esse livro não é bem um livro. É um documento eletrónico sem consistência física, que comprei na amazónica Amazon.
Tenho lido pouco. À segunda página adormeço. E logo a seguir acordo estremunhada e releio a mesma página. Só então adormeço de vez, exatamente no mesmo parágrafo. 
No outro dia entrei na Candide só porque sim. É uma das livrarias aqui do bairro, onde moram pedaços de sol e pequenas preciosidades. Foi o meu objetivo do dia: ir até à Candide ver as vistas.
Além de não ter comprado nada, bati com o carrinho em várias pilhas de livros. Fui dizendo Desolée nas curvas e contracurvas. Ainda peguei naquele livro noturno da Kitty Crowther. No Natal comprei dois exemplares e não ficou nenhum cá em casa. Quero um exemplar só para mim, mas não tenho pressa. 
Quando saí da Candide disse Au revoir, mas devia ter dito DesoléeÉ uma afronta sair da Candide de mãos a abanar. 
Foi o senhor da Candide que me apresentou Annie Ernaux. Foi na Candide que descobri Julie Delporte. O senhor da Candide dá-me marcadores de livros e bons conselhos. Pergunta-me se prefiro a edição de bolso, que é mais barata. Demora-se nos embrulhos. Entusiasma-se: Se gosta desse, então vai gostar deste. Um pouco ao estilo da Amazon, mas nada a ver com a Amazon. Eu sou feliz na Candide por causa do senhor da Candide, que fala um francês muito delicado e me pergunta quantos meses tem a cria. 
Eu não vou à Candide comprar livros. Eu vou à Candide respirar, interromper o dia. Interagir, vasculhar. Eu vou à Candide viver.
Moro num bairro onde o comércio tradicional persiste. Há mercearias, padarias, cafés, sapateiros, talhos, queijarias, livrarias. Neste inverno tão duro, em que dou os primeiros passos no mundo contraditório da maternidade - que é uma solidão a dois - são estas lojas que me salvam. As pessoas das lojas, as vitrines onde paro, os diálogos curtos. 
A senhora da farmácia ri-se porque me esqueci da carteira. Digo Desolée. Ela responde-me que as mães também precisam de descanso. Durma quando ele dorme. Eu digo: Mas ele não dorme. Ela dá-me conselhos. Faça assim, faça assado. Compro café aqui e pão ali. Vou à senhora das tartes. E depois vou até ao parque ouvir os pássaros. A cria ri-se muito com o barulho dos pássaros. Pio pio, pio pio. 
Sento-me num banco de jardim. Respondo às mensagens do WhatsApp, envio fotografias aos avós, vou ao Facebook, escrevo no blogue. Porque o mundo da tecnologia e da comunicação também me salva. Quero ler os textos da Ana Cássio Rebelo sobre a Índia e os da Maria João Lopes sobre a Maria Rita. Ouço a Biblioteca de Bolso através do iTunes. Eu quero viver no mundo real do meu bairro e também neste outro mundo das apps e das hiperligações. Não são mundos inconciliáveis. Mas são antagónicos.
O mundo real é humano. É carente. Precisa de mimos. Precisa de tempo. Precisa de mim. 
Cada vez que uma livraria fecha, sinto que a culpa é minha. E é mesmo.
Se a Candide fechar, atiro-me a um poço. Ou a Ptyx. Ou a livraria da Flagey das bandas desenhadas. A propósito, ainda não fui à livraria portuguesa que abriu há umas semanas. 
O que será deste mundo sem livrarias nem mercearias? Ruas sem lojas, sem caras, sem diálogos, sem filas.
Andamos cada vez mais sozinhos com os nossos botões eletrónicos. 
Olho para a minha cria e apetece-me pedir-lhe desculpa. Desolée, pequeno ser humano. O mundo está cada vez mais próximo. Mas as pessoas estão cada vez mais distantes.
E de quem é a culpa?
É minha, claro.