terça-feira, 17 de outubro de 2017

Ela escreve e o país arde

Ela escreve e o país arde. A culpa logo ali, na ponta dos dedos. E então pára de escrever. Faz outra coisa qualquer. Por exemplo, rega as plantas. As suas mãos em brasa.
O país arde e ela caminha para o elétrico. Lê um artigo sobre amamentação. Aponta a expressão "breast friend". No Facebook, algumas mulheres falam de assédio sexual. Só as mulheres falam de assédio sexual. Os homens estão-se a flamejar para isso.
O país arde e ela pensa naquele padre da sua infância. Aquele homem místico a pousar-lhe a mão no joelho. A falar-lhe da beleza por dentro e da beleza por fora. A capela compenetrada naquela coisa do divino, Jesus muito crucificado. Não se percebe se estará morto ou vivo. A menina muito bem sentada no banco da capela, a ouvir o Senhor Padre, pronta a confessar os seus pecados. Mas aquela mão desconcentra-a. A mão divina pousada no joelho. Tomara que aquela mão saia dali, pensa. Porque o seu joelho não tem vocação nenhuma para o sobrenatural. É um joelho muito feio e peludo, cheio de cicatrizes. Ainda hoje, quando pensa no seu joelho, pensa em todos os seus pecados e também naquela mão divina, que afinal era a mais humana de todas as mãos, a mais feia de todas as mãos.
O elétrico chega ao seu destino e ela pensa no seu país a arder, naquela memória em chamas e coloca então a hipótese de esse padre morrer num incêndio. O homem carbonizado, extremamente morto. Depois arrepende-se desse pensamento, claro. Faz outra coisa qualquer. Por exemplo, escreve um texto. Sempre é uma pequena fogueira para a alma. Talvez qualquer coisa aconteça. Um certo ardor por dentro, quem sabe. Mas está difícil escrever neste mundo. Está difícil viver.
Um certo vazio em todas as coisas.
O país arde e ela passa pela livraria bonita. Os livros muito bem sentados na montra. Não se percebe se estarão mortos ou vivos. Lembra-se então daquele livro enigmático, que falava de um futuro inventado em que os bombeiros queimavam livros. Fahrenheit 451, a temperatura a que o papel arde. Diz que o autor escreveu o livro em duas semanas. Uma autêntica combustão criativa.
Há qualquer coisa inspiradora nessa ideia, de facto.
A literatura no meio das chamas. Esturricada. Fulgurante.
Reduzida a cinzas.