terça-feira, 8 de outubro de 2013

Desfiladeiro em pessoa

O que vale é que isto de voltar à cidade bruxa já nem aquece nem arrefece, é igual ao litro, a pessoa encolhe os ombros e a cabeça, tanto faz, é-me indiferente, o mesmo lusco-fusco, as mesmas pessoas na rua, a mesma rua, a mesma janela por onde vejo o lusco-fusco e as pessoas e a rua, as coisas sempre iguais, o que até é bom, é muito bom, é uma maravilha, no fundo chegar a casa deve ser isto, as coisas como antes, o sofá na penumbra, a manta caída, um tomate podre no frigorífico e afinal não está tudo igual, qualquer coisa apodreceu, que engraçado, e as plantas também murcharam, coitadas, uma sensação tépida de se estar vivo mas não assim muito, porque não sinto nada além de um certo cansaço de andar por aí a arrastar as malas e também esta pedra fria e bem polida que é o meu coração e isto até nem deve ser uma coisa má, eu a bem dizer até gosto de ser este fenómeno esquisito da natureza, este acidente geográfico de espantar ao longe, um desfiladeiro entre duas montanhas que nem conheço bem, porque sou precisamente um desfiladeiro em pessoa ou então uma falésia a cair a pique, a resistir ao vento, e isto até me dá jeito, porque da minha falésia vê-se o mar que também é sempre igual ao longe e andam por aqui gaivotas e também mexilhões, sempre dá para sobreviver e assim como assim eu não moro aqui. Eu moro dentro da cabeça.