quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mohammed Ajmal Amir Kasab

O narrador deste texto anda a pensar em Mohammed Ajmal Amir Kasab há dois dias. O autor deste texto também, mas não pelos mesmos motivos.
Vejamos: o narrador deste texto interessa-se por Mohammed Ajmal Amir Kasab, pela pessoa de 21 anos; o autor não, está-se profundamente nas tintas para este paquistanês.
O narrador pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab e vê o indivíduo, lamenta o indivíduo, não o compreende, não o aceita e anda preocupado precisamente com o seguinte: se encontrar na rua o rapaz de nome Mohammed Ajmal Amir Kasab, não sabe o que dizer-lhe. Isto porque o narrador deste texto fica de rastos sempre que lhe faltam as palavras, parte do princípio de que o diálogo não é possível sem as palavras.
Ora, a verdade é que o narrador deste texto gostaria de ter uma coisa clarividente para dizer a este rapaz. Uma coisa única, extraordinária, brutal, capaz de mudar o jovem capaz de matar dezenas de pessoas. O narrador deste texto gostaria de o encontrar na rua e de lhe dizer uma coisa capaz de mudar o mundo. Apenas isto.
O narrador, por lhe faltar o corpo, tem destas presunções, mas o autor deste texto não o leva a sério, como é evidente. Desce a rua, sem lhe prestar atenção.
O autor não esconde que também anda a pensar em Mohammed Ajmal Amir Kasab, mas, na prática, não quer saber do rapaz. Quando pensa nele, pensa nos atentados de Bombaim, como é natural, e depois deixa logo de pensar em Bombaim e na Índia e no mundo, passa a pensar só na Europa e, logo a seguir, só na sua casa. O autor, quando pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab, espera o seguinte: que o terrorismo não chegue a Bruxelas. Depois distrai-se com esta ideia, pensa nos potenciais alvos para um ataque terrorista nesta capital europeia e tem pena de estar ao pé de todos eles.
Enquanto desce a rua, o autor acha todas estas suposições mais mórbidas do que o livro sobre vampiros que anda a ler, por isso resolve pensar noutra coisa. Regressa a Mohammed Ajmal Amir Kasab e pensa novamente em Bombaim, na tal estação de comboios. Depois distrai-se outra vez e começa a planear uma viagem nos comboios indianos. Lembra-se do anúncio "Incredible India" que tanto passa na BBC, lembra-se do filme Slumdog Millionaire. Gostaria de ir, por exemplo, a Goa, ao Taj Mahal, a Deli.
O autor deste texto anda evidentemente preocupado com o seu umbigo e, a propósito disso, pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab. Não anda propriamente preocupado com o rapaz paquistanês de 21 anos.
O narrador deste texto sim, anda preocupado com o rapaz de 21 anos, porque é europeu e acredita na carta dos direitos fundamentais, nomeadamente no artigo 2.º relativo ao direito à vida. Mas enquanto desce a rua enfiado no capuz do autor assusta-se com a ideia de encontrar Mohammed Ajmal Amir Kasab ao virar da esquina, tem vergonha da sua incapacidade para o diálogo, deixa de perceber a razão da sua existência.
O autor deste texto também é europeu mas, antes de mais, é humano, tem um corpo a sério e uma vida pela frente. O narrador não, tem uma existência intermitente: aparece e desaparece no capuz do autor. Indiferente a tudo isto, o autor desce a rua e pensa agora em Gandhi, nos seus ensinamentos. Volta a pensar no seu umbigo e depois em Mohammed Ajmal Amir Kasab.
Repete na sua cabeça a esperança de que o terrorismo não chegue a Bruxelas. Depois pensou em coisas boas. Por exemplo, no facto de o rapaz estar a ser julgado na Índia. Essa era uma coisa boa. Por a Índia ser um país longínquo. E por aí se aplicar a pena de morte.
O narrador fica tão chocado com o pensamento do autor que decide morrer. Atira-se do capuz e morre. Não obstante o seu direito à vida.