quarta-feira, 1 de abril de 2009

1 de Abril

No dia 1 de Abril o narrador convenceu o autor a escrever.
Se ainda não se espantou, espante-se.
Repito: o narrador convenceu o autor a escrever.
Jamais se vira uma coisa assim. Era um evento verdadeiramente extraordinário, porque, como todos sabemos, tudo isto se costuma passar ao contrário: é o autor que convence o narrador. É sempre o primeiro que guia o segundo numa autêntica hierarquia de vontades, pois mesmo na arte da inspiração e da escrita há protocolos, disciplinas e hierarquias e tudo o que de artístico tem tão pouco.
Esta era, portanto, a ordem natural das coisas, mas ultimamente, por as actividades do autor não darem espaço nem oxigénio nem dióxido de carbono à autoria devido a prioridades do momento que nada tinham que ver com arte, o autor perdera, por assim dizer, a vontade, o fio à meada, a inspiração, o que quer que esteja no início da coisa artística, daí que não se esforçasse por convencer o narrador de nada, se não apenas que se calasse e metesse a cabeça entre as orelhas. E dito isto, o narrador, por vingança ou tédio ou simples maldade - que também a há no coração dos narradores - ia cantando dentro da sua cabeça, a qual ficava, por sua vez, dentro da cabeça do autor, a tal canção do Sérgio Godinho, que o autor, por azar, não apreciava (o pronome relativo refere-se aqui à canção e não ao Sérgio Godinho, apreciado por toda a gente e mais alguma).
E justamente no dia 1 de Abril deu-se o caso extraordinário ou até o milagre de Nossa Senhora de o narrador, aborrecido como estava com a inércia do autor, ter tomado a iniciativa de escrever, ou melhor, de fazer o outro escrever por ele. O autor, para mal dos seus pecados, levantou-se contrariado da cama, ainda a noite madrugava, e sentou-se no sofá da sala de estar, por sinal muito fria dado que se esquecera da janela aberta durante todas aquelas horas nocturnas, e escreveu.
Intervalo para descrição: No colo uma almofada e sobre a almofada um bloco. Na mão direita a caneta e na cabeça o narrador ditando o texto devagar. O narrador afastava os cabelos atrapalhados do autor lá do alto do cocoruto todo-poderoso certificando-se de que a redacção saía correcta e escorreita do ponto de vista ortográfico, sintáctico e verbal.
No final da história, satisfeitíssimo, o narrador ordenou ao autor que publicasse aquela redacção no seu lugar. Mas infelizmente, ao ouvir o nome proibido do lugar, o autor acordou sobressaltado daquele feitiço e rasgou o texto decididamente. Depois coçou a cabeça com muita força e o narrador caiu redondo por ali baixo, tendo sido sua sorte a de ter ficado pendurado na ponta de um cabelo espigado que o agarrou pelos colarinhos durante a queda.
O autor foi então ao seu lugar ou não propriamente: sentou-se na margem de cá a observar a margem de lá contemplativamente. Imaginou que Ulisses, depois de regressado a Ítaca, se fizesse ao mar vezes sem conta só para repetir o regresso, a terra à vista, o mar interrompido.
O autor todo-poderoso, de repente inspirado, regressado, artístico, escreveu uma história que nada tinha que ver com a história inicial, a do narrador. Ria-se enquanto escrevia. No final achou que a sua obra era boa.
Tão boa que não parecia sua.
(E não era. Isto porque o narrador continuava a ditar a mesma história, escondido atrás dos cabelos. No entanto, chegado ao final da mesma, deixou que o autor a publicasse, julgando-a sua.)
O narrador procedera desta forma condenável não por altruísmo, não por vingança nem tédio nem nada.
Só por ser dia 1 de Abril. Mais nada.
Um narrador brincalhão.