quarta-feira, 29 de outubro de 2008

No escritório do chefe (IX)

(Última parte)
- O grau dos adjectivos?!
- Sim, o grau dos adjectivos!
- Mas agora voltámos à Edite Estrela?!
- Ó Vasco, a Edite Estrela é uma grande mulher.
- Mas eu não quero saber da Edite Estrela, ainda não percebeu isso?
- Eu também não quero saber dela pra nada, ó Vasco. Mas do grau dos adjectivos, quero.
- Olhe, eu não! Estou-me nas tintas para o grau dos adjectivos. Badamerda pró grau dos adjectivos.
- Pois, é aí que o Vasco falha. É aí que o Vasco falha. Exactamente aí. Não há nada mais importante do que o grau dos adjectivos. Nada!
- Olhe, chefe, você definitivamente não me vai deixar falar. Não há paciência! De maneira que eu vou dizer o que tenho a dizer assim às três pancadas. Número 1: já não quero trabalhar mais para si. Número 2: arranjei outro emprego. Número 3: você é estúpido que nem uma porta, não compreende o que se passa na sua própria empresa e está-se a borrifar para os homens e as mulheres que trabalham nesta casa. Número 4: Vai daí, caguei para isto. Vou-me embora. Adeus.
- Está a ver, Vasco? Está a ver? Você, com um pouco mais de gramática, um pouquinho só, ia longe. Ia longe. Longe mesmo. Mas como lhe falta o léxico, você não vai mais longe, vai ficar aí, percebe? Aí, nesse sítio, nessa jaula de jardim zoológico. Para sempre.
- Tudo bem. Não vou mais longe! Isso para mim está tudo bem. Eu não quero ir mais longe, entende? Quero mesmo é ir-me embora. Você pode ficar com o léxico e a gramática e o grau dos adjectivos, que eu não me importo nada. Mesmo nada. E no entretanto, você, para mim, continua a ser estúpido.
- Pois continuo, para uns somos sempre estúpidos, não haja ilusões. Não quero convencê-lo do contrário. Agora veja o seguinte, Vasco. Veja o seguinte: você, com um pouco mais de gramática, se calhar tinha ganho esta batalha.
- E ganhei-a, chefe!
- Ganhou-a?! Você está parvo? Acha que o seu discurso alterou alguma coisa em mim? Em você? No mundo? Acha?! Você veio aqui com essa pose de herói e não conquistou nada nem ninguém.
- Olhe, tem graça, você também não.
- Eu não queria conquistá-lo, Vasco. Estive aqui o tempo todo a dar-lhe as ferramentas. Para você me conquistar.
- Eu não queria ferramentas. Queria só dizer-lhe o que tinha a dizer. E você não me ouviu, nunca ouviu, não quer ouvir. Ora, quem não ouve, ou é surdo, ou é estúpido. Você é estúpido.
- Vasco, você não tinha nada para dizer. Nada, absolutamente nada! Percebe? Veio aqui para chamar-me estúpido, era esse o seu objectivo.
- E cumpri-o! Cumpri-o! Logo, ganhei a batalha.
- Ganhou?! Ganhou?! Ora esta agora… Ganhou o quê?
- Isso: chamar-lhe estúpido. Chamei, não chamei?! Logo, ganhei.
- Isso aí não é um prémio, homem, não é um prémio. É um feito. Está ao seu alcance. É uma obra, nada mais. Deus sonhou, você quis e a coisa fez-se.
- Ao contrário, chefe.
- Ao contrário o quê?
- Deus quis, eu sonhei e a obra nasceu. Não foi Ele que sonhou. Ele quis.
- Está bem, Deus quis e você sonhou, pronto. E depois você entrou por aqui adentro e concretizou. Pronto, foi só isso. Não há aí nenhum prémio, nenhuma recompensa, o mundo é igual ao de há bocado. E sabe porquê, Vasco? Sabe porquê?
- Diga lá porquê, chefe!
- Porque não houve uma consequência. Uma só que fosse. Não houve. Você, com essa atitude, não conseguiu nada. Nada, percebe? Nada de nada. É assustador como a energia do Vasco não gerou nada.
- Gerou, sim. Gerou, sim, eu bem sei que sim. Gerou auto-estima, auto-confiança. Eu gosto mais de mim hoje, chefe, do que alguma vez gostei. Esta é, para mim, a medalha d'ouro! Gosto de mim!
- Você sempre gostou de si, você só gosta de si! E no entanto, Vasco, não mudou o mundo. Repare nisto: não mudou o mundo. Esteve perto disso e não o fez. Por opção. Você não mudou o mundo por opção. Isto é que é gritante! E tudo por causa do grau dos adjectivos.
- Epá, já não posso com o grau dos adjectivos, chefe! Acabe lá com isso.
- Pois, é aí a sua falha. Como lhe disse, é aí a sua falha. Eu a querer a ensiná-lo, a querer fazer de si um homem melhor, e você não quer aprender, não quer ouvir, não quer ser.
- Pois não.
- Pois não. Pois não! Logo, você para mim, é estúpido.
- Olhe, essa agora também não mudou o mundo, ó chefe, que pena!
- Pois não, não mudou. Não se pode mudar o mundo com gente estúpida, ó Vasco.
- Não, não, pare já com essa de virar a ponta ao prego.
- Não páro, não. Porque eu tenho imensa coisa para lhe dizer, Vasco, imensa coisa. O meu objectivo não é chamar-lhe estúpido, isso para mim é menor, não me limito aos tomates, percebe? Quero ir mais longe, quero transformá-lo, quero indicar-lhe um caminho. Para você deixar de ser estúpido. Mas você, por opção, não quer saber do conhecimento que eu tenho para lhe dar.
- Pois não.
- Pois não. Pois não! Você era quase um herói, Vasco. Quase um herói. Mas não se pode mudar o mundo sem gramática, Vasco. Não se pode. Repito: Não se pode mudar o mundo sem gramática.
- Ai não, chefe?
- Não, Vasco. Porque só ela permite o diálogo. Só ela permite o diálogo. E sem diálogo, não há comunicação. Só a gramática permite a comunicação. Entre si e os outros, entre si e os seus tomates, entre nós e o mundo. Percebe?
- Pronto, tudo bem, a gramática vai salvar o mundo. Mas você, para mim, continua a ser estúpido.
- Olhe só a coincidência disto, Vasco, olhe só: você, para mim, também continua a ser estúpido. É incrível, Vasco.
- Pois é. Então se calhar, nenhum de nós é herói, ó chefe.
- Se calhar não, Vasco.
- Mas somos os dois estúpidos.
- Sim, é verdade. Temos isso em comum. E temos outra coisa ainda em comum: somos dois estúpidos com tomates.
- É verdade.
- E no entanto eu sou chefe. E o Vasco não.
- Sim, é verdade. O chefe é chefe. Mas eu sou livre. E o chefe não.
- É uma perspectiva. É uma perspectiva. Vá-se lá embora então.
- Vou sim, chefe. Não disse tudo o que queria ter dito, mas enfim, fica para a próxima.
- Não se pode ter tudo nesta vida, Vasco.
- Pois não, chefe.
- Pois não.
- Ora então, cumprimentos à selva, chefe.
- Obrigado. E à sua jaula também.


(FIM)