terça-feira, 14 de outubro de 2008

No escritório do chefe (IV)


- Epá, ó Vasco, eu noutro dia qualquer corria consigo ao pontapé. Epá, é que corria mesmo. Noutro dia qualquer, levantava-me daqui e corria consigo ao pontapé: trás! trás! trás!. Como se faz aos cães e aos gatos e aos pombos e a tudo o que é animal. Que o ser humano corre ao pontapé tudo o que é animal! É ou não é? É ou não é, Vasco?
- É, é. Temos um bocado a mania que somos o rei da selva, lá isso é verdade.
- E somos, Vasco, e somos de facto o rei da selva. Tem alguma dúvida? Claro que somos o rei da selva.
- Bom, uns mais do que outros.
- É verdade, mas se não fosse assim, se não fosse assim, homem, isto não era uma selva, ó Vasco. Não era uma selva.
- Não, era uma coisa melhor.
- Melhor?! Você quer melhor do que a selva, homem?
- Sim, já agora. Queria assim uma coisa mais limpa, mais justa, mais partilhada, mais equitativa, mais organizada, em que cada um tivesse o seu espaço, a sua voz, o seu voto. Isso é que eu queria. Agora uma selva, não. Fiquem lá com a selva. Não quero a selva pra nada.
- Ó Vasco, você está mesmo passado. O que você está a dizer é que prefere um jardim zoológico a uma selva! Cada um na sua jaula com a sua comidinha e o seu espacinho e o seu jardinzinho, tudo muito justo, tudo muito dividido. É essa a sociedade que você quer?
- Não, eu nunca disse que queria uma jaula.
- Ó homem, mas se você sai da selva, sai do seu habitat natural! É que perde a luta para sempre.
- Não faz mal, eu não quero lutas.
- Como assim, não quer lutas?! Como assim? Como assim?
- Não quero, não.
- Como, não quer? Como, não quer? Você entra aqui, chama-me de estúpido e não quer lutas? Não quer lutas? Ó homem, claro que você quer lutas, você quer lutas. Porque você é um homem de luta, pá! Você, se saísse da selva, morria. Morria, está a perceber? Íamos todos ao seu funeral. Você, sem luta, não era ninguém. Ninguém, Vasco. O meio-herói que há em si é um lutador!
- Não, lutador não. É um justiceiro, chefe.
- É um lutador, sim! Um justiceiro é um lutador, não me venha com merdas. E você, como é óbvio, não quer viver num jardim zoológico, Vasco, isso é prós maricas. Você quer ir à luta. E a luta faz-se aqui, na selva.
- Ok.
- Ora então seja bem-vindo, Vasco! Bem-vindo à selva!
- Obrigado, chefe. Obrigado.
- Bom, vou então pegar aqui no meu bloquinho de papel e na minha canetinha, como já lhe tinha dito. E vou já escrever qualquer coisinha no meu bloquinho. Sabe porquê?
- Porque quer apontar uma coisinha?
- Exactamente, exactamente. Porque, entretanto, já aprendi uma coisinha hoje, sabe? Vou então escrever aqui: Vasco, tracinho, justiceiro. Cá está: Vasco, tracinho, justiceiro. Pronto, já está.
- Epá, ó chefe, parece o título de um romance.
- E é, Vasco. E é. Vasco, tracinho, justiceiro. É o título de um romance. Só que ninguém o escreveu. Tanto escritor que anda praí, pá, e ninguém o escreveu. Mas isto não invalida que você não seja um romance. Os escritores é que andam distraídos.
- Andam noutras lutas, chefe.
- Pois andam, devem andar. Esperemos bem que andem, Vasco.
- Esperemos bem que sim, chefe.
- Um país sem arte é um país de gente amorfa, não acha, Vasco?
- Sim, ou pior!
- Pior?!
- Sim. Um país de gente estúpida.
- Pois, isso é bem pior. Ó Vasco, entretanto deixe-me que lhe diga o seguinte: Você, Vasco, você tem tomates que é uma coisa doida, pá.
- É verdade, chefe, é mesmo verdade.
- É que tem mesmo! Você tem à vontade um quilo de tomates dentro das calças, pá. Um quilo de tomates! Só de acartá-los deve ficar estoirado, não, Vasco?
- Não, chefe. Por acaso, os meus tomates não me cansam nada.
- Não?!
- Não. Eles também já são crescidos, chefe. Vão pelo seu próprio pé.