segunda-feira, 13 de outubro de 2008

No escritório do chefe (III)


- Cale-se, homem. Não diga mais disparates! Não diga mais disparates!
- Disse o estúpido ao louco.
- Sim, disse o estúpido ao louco. Claro que disse! Porque um estúpido, embora estúpido, não diz disparates: diz estupidezes. Mas disparates, não. Percebe? Dizer uma estupidez é diferente de dizer um disparate. Muito diferente, percebe?
- Diferentíssimo.
- Exactamente, Vasco, exactamente. Diferentíssimo e não diferente. Então vamos lá embora. Sente-se aí.
- Não me vou sentar, chefe, já lhe disse. Tenho muito que fazer.
- Outro disparate, outro disparate. Pare de dizer disparates, já não posso ouvir mais disparates hoje. Sente-se já aí. É uma ordem.
- Muito bem, vou então sentar-me.
- Está confortável, homem?
- Estou, estou. É uma cadeirinha confortável esta. Confortabilíssima.
- Ainda bem que é, é para isso que eu a quero: para ela ser confortabilíssima para quem se senta nela, 'tá a ver? E eu hoje, mais do que nunca, só quero o seu conforto. Noutro dia qualquer, estava-me realmente nas tintas, sabe, Vasco? Tenho outras prioridades, mas hoje, porque o dia se pôs tão bonito, quero só o seu conforto.
- Muito obrigado.
- Não tem de quê, Vasco, não tem de quê. Agradeça ao sol, não a mim. Era o que faltava eu mandar também no tempo, não era, ó Vasco? Essa é que era. Já lhe chega um chefe no trabalho e outro em casa, hein, Vasco?
- É verdade, chefe. Deus me acuda.
- O Vasco acredita em Deus?
- Não muito, se me permite a expressão.
- Eu também não. Mas sou católico. Quer dizer, baptizei os meus filhos. Mais por eles do que por mim, percebe? Era aquela coisa: Não queria que lhes faltasse nada, 'tá a ver? E pronto, baptizei-os. Uma coisa idiota, claro está, mas na altura achei que sim, que devia baptizá-los. Não fosse o Diabo tecê-las, hein? Aqui aplica-se mesmo o dito.
- Pois, compreendo. Fazemos coisas muito estúpidas pelos nossos filhos.
- É verdade, Vasco. É verdade. Mas vamos então ao que interessa. Vou então pegar aqui no meu bloco de notas e na minha canetinha. Sabe para quê?
- Calculo que para tirar notas.
- E calculou muito bem, Vasco, calculou muito bem. Porque, como lhe disse, eu hoje estou disposto a salvar o mundo. Está um dia tão bonito, Vasco, que realmente só me apetece fazer isso: salvar o mundo. E vejo que aqui o Vasco também.
- Cá está uma coisa que temos em comum, chefe.
- Exactamente. E na minha opinião, duas pessoas que estão dispostas a salvar o mundo são potenciais heróis. Ainda não são heróis, claro, mas têm efectivamente esse potencial, poderão vir a provar a sua heroicidade, 'tá a ver? São potenciais heróis. Por outras palavras, considero que a vontade já faz alguma coisa por nós. O Vasco concorda com isto?
- Concordo, sim, chefe. A vontade é meio caminho andado.
- Pois claro que é. E se assim é, eu e o Vasco somos meios-heróis. Hein? Já é alguma coisa.
- Pois é, chefe, pois é!
- Ora bem, uma conversa entre dois meios-heróis só pode ser uma coisa importante, Vasco. É que só pode ser. Sabe porquê?
- Porque meio-herói mais meio-herói, dá um herói completo, não, chefe?
- Não tinha visto as coisas por esse prisma, Vasco. Realmente não tinha, mas podemos ir por aí, podemos ir por aí. Eu e o Vasco juntos, temos o mundo aqui, como dizia aquele outro Vasco num daqueles filmes do Estado Novo, lembra-se?
- Lembro-me, sim senhor.
- Gosta desses filmes, Vasco?
- Gosto, chefe, bastante até. Mas do Estado Novo, não.
- Pois claro que não, homem. Só as pessoas estúpidas é que gostam do Estado Novo.
- Não é bem assim, chefe, não podemos dizer isso.
- Pois claro que é assim, ó Vasco. Só pode ser assim. Há que dizê-lo com frontalidade, como dizia o outro. Para sermos sintéticos, é isto: há pessoas pró-Estado Novo e pessoas contra o Estado Novo. As primeiras só podem ser estúpidas.
- Bom, talvez. Mas e o chefe? Gosta desses filmes?
- Gosto, pois. Mas também não gramo o Estado Novo, Vasco.
- Pois, 'tá a ver?! Não podemos generalizar. Ele há pessoas estúpidas que não gostam do Estado Novo.